O planeta terra começa a emitir sinais de alerta cada vez mais intensos aos seus mais nefastos depredadores – os seres humanos. Há quase 10 anos, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas foi categórico ao atribuir a mudança climática às atividades humanas. Agora, neste agosto, uma nova avaliação do mesmo Painel, prevê mudanças eminentes e mais violentas do que as calculadas anteriormente. Ondas de calor mais frequentes e prolongadas, verões mais quentes, temperaturas extremas e redução da humidade que afetarão sem precedentes a nossa saúde e capacidade de produzir alimentos, em particular nas regiões subtropicais, onde reside uma parte importante da humanidade.
Embora não possamos parar de respirar, tudo o resto necessita de ser repensado. A começar pela forma de produzir, transportar e consumir alimentos, uma das atividades mais poluentes à face da terra. Em 2019, a Comissão EAT-Lancet presidida pelo Prof. Walter Willett e Johan Rockström, que reuniu dezenas de cientistas de elevada qualidade na área alimentar, caracterizou a produção de alimentos como o maior impulsionador individual da degradação ambiental e sugeriu, de forma fundamentada, a necessidade da transição para dietas saudáveis e sustentáveis através da duplicação do consumo de frutas, hortícolas, frutos gordos e outros vegetais, e a redução em mais de 50% de carne vermelha e açúcar. Ou seja, uma dieta à base de plantas e com menos alimentos de origem animal tentando a dupla tarefa de proteger os seres humanos e o meio ambiente.
Contudo, o que o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas aponta agora, são mudanças para a próxima década. Nestes 10-20 anos que temos pela frente, teremos de acelerar e mudar ainda mais rapidamente a nossa relação com os alimentos. Uma relação aprendida na barriga das nossas mães, de aromas, gostos, preferências e histórias de socialização forjados na nossa infância, de aprendizagens culinárias familiares construídas há mais de 8000 anos na bacia do mediterrânico e que agora poderão ser colocadas em causa. Sim, a tradição alimentar que nos protegeu nutricionalmente vai ter de ser revista e causará, certamente, um terramoto social e político. Durante milhares de anos aprendemos, como bons omnívoros, a diversificar as nossas fontes de nutrientes melhorando a nossa “dieta” e combatendo carências. Nesse aspeto, o homem do mediterrâneo aprendeu a lidar com as alterações climáticas a uma pequena escala. Aprendeu a cozinhar com grande segurança os vegetais adicionando-lhe água (vejamos as nossas sopas), a maximizar a proteína incompleta das leguminosas (grão e depois feijão) misturando-as com pão ou arroz, aprendeu a conservar pelo sal e a maximizar a proteína animal através dos laticínios dos pequenos ruminantes capazes de descer e subir montes à procura de pasto (a grande tradição queijeira do mediterrâneo) ou a aproveitar na quase totalidade o porco. Mas o que aí vêm não tem precedentes. Com uma estimativa de 10 biliões de pessoas a viver no planeta em 2050 teremos de ter padrões alimentares maioritariamente baseados em vegetais, reduções drásticas nas perdas e desperdícios de alimentos (que se estimam em 30% do que é produzido) e grandes melhorias nas práticas de produção de alimentos.
Para o consumidor do dia a dia, para todos nós, serão colocados grandes desafios. O primeiro será o de conciliar a promoção da saúde através da alimentação saudável com a produção sustentável de alimentos. A quem devemos obediência? A uma pequena quantidade de carne de elevada qualidade nutricional, saborosa e de fácil confeção que nos permite uma alimentação equilibrada ao longo da semana ou à mistura de diversos vegetais, em quantidades suficientes para obter quantidades aparentadas de nutrientes tal como as da carne, com maior dificuldade de acesso e preparação mais complexa mas com bastante menor impacto ambiental, nomeadamente com menor utilização de água e com menor emissão de gases com efeito de estufa?
O segundo desafio será o da acessibilidade. Como ter acesso a produtos alimentares que consigam conciliar baixos preços e proteção ambiental sem cair em egoísmos nacionalistas. Como perceber se a banana produzida no Equador é realmente produzida de forma ambientalmente sustentável? E se a forma mais sustentável for a mais cara, onde ficarão os 2 milhões de portugueses que estão no limiar da pobreza e insegurança alimentar? E como não ficarmos reféns dos protecionismos locais? Ao comprar apenas no nosso quintal deixaremos, por exemplo, de importar bananas da Colômbia. Mas também poderemos ser impedidos de exportar a pera-rocha, penalizando os nossos produtores nacionais. Temos 10 anos para pensar no assunto.
O terceiro desafio será o da aprendizagem. Como conseguir cozinhar com tanto vegetal, reduzir de forma drástica o consumo de carne e deixar de comer, por ex. chocolate e bacalhau (alimentos com elevada pegada ecológica) quando nos apetece? Teremos de pedir ajuda aos nossos amigos vegetarianos, mas não só. A escola e os nutricionistas deverão ter um papel central nesta aprendizagem. Conseguirá a escola e o setor público implementar modelos de compras públicas ecológicas tendo por base questões ambientais e modificar ainda e de forma (quase radical) as ementas? Se pensarmos na frágil qualificação dos recursos humanos nesta área, os baixíssimos preços pagos por refeição e a pressão dos pais, o desafio será enorme.
O quarto desafio é o da integração da tecnologia e os receios que teremos de ultrapassar para consumir alimentos de forma totalmente nova, quer seja a farinha de insetos fornecedora de proteína de origem animal, quer seja a carne produzida em laboratórios e que se baseia na multiplicação de células retiradas de animais e colocadas em meio de cultura com fatores de crescimento e nutrientes. Ou ainda a produção vegetal em hortas verticais urbanas e muito próximas dos locais de consumo. Mas quem conhece o mundo da produção alimentar sabe que há muito tempo a produção em escala deixou de ser uma atividade praticada em ambiente campestre e bucólico.
O quinto desafio será o do investimento familiar e pessoal. Investir em alimentação saudável e sustentável às nossas mesas significa não procurar apenas o mais barato. Significa investir em competências culinárias. Significa treinar o palato dos mais novos. Significa um investimento no orçamento familiar e no nosso tempo disponível para escolher e confecionar. Num dos últimos relatórios da DGS sobre a adesão à Dieta Mediterrânica apenas 26% da população portuguesa com mais de 16 anos apresentava uma elevada adesão à dieta mediterrânica, sendo que a maioria da população tinha um consumo de leguminosas, hortícolas, fruta e frutos secos oleaginosos abaixo do desejável. Incluir feijão, grão, lentilhas, amêndoas, nozes, couves, espinafres, ervas aromáticas e demais hortícolas e fruta no centro das refeições substituindo a fritura rápida, a carne barata e o refrigerante sempre desejável por estes alimentos não é uma tarefa fácil para quem tem uma vida dura e pouca vontade em investir aqui uma parte do seu tempo e rendimento.
Por detrás destes desafios individuais e da nossa escolha direta, existe outro desafio ainda maior que será o social e político. Onde muito terá de ser decidido não fossem muitos destes bens serem bens públicos. O setor alimentar (incluindo aqui a restauração) é um dos mais importantes empregadores na Europa. A mobilidade de alimentos é altamente consumidora de recursos fósseis, mas também emprega milhares de europeus. E a paisagem e a produção agrícola têm um importante papel social, cultural e ambiental que necessita de ser preservado. Por exemplo, a pecuária é atualmente responsável pela emissão de 7,1 giga toneladas de CO2 equivalente por ano, o que corresponde a 14,5% de todas as emissões antropogénicas de gases com efeito de estufa. Mas é também um setor de grande peso na agricultura europeia. Como lidar com estes assuntos eminentemente sensíveis. Ou nestes dias… a sensibilidade vais ter de ser colocada de lado?
Para terminar uma mensagem de esperança. O aquecimento global vai ser mais sentido ao longo da bacia do mediterrânico. Um espaço onde as populações estão muito habituadas a lidar com calores extremos e situações de catástrofe. Aqui vão acontecer, já nas próximas décadas, algumas das mais extraordinárias revoluções alimentares da humanidade. Neste momento já temos conhecimento e muita tecnologia que nos pode ajudar e toda uma tradição alimentar mediterrânica de base vegetal e de economia circular. A nossa agricultura e, em particular, a distribuição alimentar é hoje altamente inovadora e adaptativa e certamente dará uma ajuda importante. Falta agora a vontade política, o investimento e a mobilização popular para a necessidade de uma mudança rápida no nosso paradigma alimentar. Que terá de chegar em breve.
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