Bissexual é alguém que experiencia algum grau de atração romântica-amorosa ou sexual por pessoas do mesmo sexo ou género e por pessoas de um sexo ou género diferente.
Há ainda pessoas, sobretudo acima dos 40 anos, que escondem a sua orientação não-heterossexual, mas manter este segredo tem um preço. E escondem porque sentem – nalgum grau e medida – o julgamento, a crítica e a discriminação da sociedade ainda heteronormativa. Por isso, em 2004 foi escolhido o dia 17 de Maio, para celebrar o Dia Internacional de Luta Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia. Este dia foi criado para chamar a atenção para a violência e discriminação vivida por homens e mulheres com diversas orientações não-heterossexuais e diversas identidades e expressões de género.
Os bissexuais são a maioria mais silenciosa. Têm seis vezes mais probabilidade de esconder a sua orientação sexual comparativamente com os homossexuais, mesmo de amigos próximos e membros da família. A orientação bissexual é a que tende a ficar mais invisível. Essa invisibilidade é mantida pelos preconceitos sociais heteronormativos. Sobre os bissexuais diz-se que “estão confusos, indecisos, a passar por uma fase, a chamar a atenção” ou que são homossexuais que não querem assumir-se, e por isso, são retratados como infiéis, indignos de confiança e incapazes de uma relação de compromisso estável.
E quando o poder desses preconceitos se combina com o poder do medo, o resultado é tão mau que a pessoa pode tornar-se invisível mesmo para si própria e desaparece ou, pelo menos, a sua identidade fica seriamente comprometida.
Forçar-se a encaixar num falso binário heterossexual/homossexual significa pretender ser algo que não é e continuar a esconder quem realmente é. A dificuldade de assumir e revelar a orientação bissexual é mais frequente entre as pessoas menos jovens, algumas delas com relações heterossexuais oficializadas. Tenho visto na minha prática clínica pessoas com mais de 40 anos, maioritariamente homens, em casamentos heterossexuais, e que me procuram porque não aguentam mais o segredo que guardam ou, porque foram descobertos. A grande pergunta que me colocam é se é possível conciliar a bissexualidade com uma relação estável, de compromisso, com a pessoa com quem não querem deixar de viver. E como é que isso se faz. Não tenho verdades, e muito menos receitas mas, tive o privilégio de seguir em terapia um casal que me procurou com este problema, e de os acompanhar na jornada de encontrar uma resposta.
Partilho aqui essa jornada relatada por eles próprios. O Nuno, bissexual, 52 anos, casado há 25 com a Maria, heterossexual, também com 52 anos. Neste casamento cheio de amor e vicissitudes de uma relação de longa duração, nasceram quatro filhos com idades entre os 10 e os 22 anos. Enquanto namorados, a Maria e o Nuno falaram sobre a assimetria entres eles, e a Maria encontrou um terapeuta para o Nuno. Mas o peso normativo do casamento, conjugado com uma relação feliz, silenciaram a conversa durante 25 anos, como se a bissexualidade do Nuno fosse algo que tivesse ficado “resolvida”. Na primeira consulta, o Nuno disse-me, “A Maria é o amor da minha vida e adoro a minha família”, e pediu-me ajuda para encontrar uma forma de viver a sua identidade com verdade e conciliá-la com a relação com a Maria e a família. Foi aos 52 anos que este homem foi capaz de recusar a sua invisibilidade e assumir a completude da sua identidade. Fê-lo com uma coragem imensa e foi recebido pela mulher com uma coragem e capacidade de aceitação ainda maior.
Como é ser um homem bissexual?
Presumo que seja diferente para cada homem, mas para mim, uma identidade bissexual resume-se à consciência que o sexo da pessoa não influencia a atração física e/ou emocional. E em certas circunstâncias, a atração pode conduzir ao desejo. Então como reconciliar esta bissexualidade com o amor por uma mulher e com a vontade de a fazer feliz e viver a dois, quando a concretização do desejo tem de ser restringida a apenas um relacionamento íntimo e heterossexual?
É possível reconciliar uma identidade bissexual com um comportamento monogâmico?
Hoje acredito que sim. Havendo um amor forte e uma partilha de muitos interesses e valores, bissexualidade e monogamia não são mutuamente exclusivos. E mais, com intimidade e diálogo, pode ser uma opção sedutora para quem procura uma vivência feliz, rica e sustentável, que dê sentido à vida sem abdicar do prazer sexual.
Como conciliar a bissexualidade de um dos elementos do casal com uma relação heterossexual, na qual um comportamento monogâmico é condição necessária para a felicidade conjunta?
Quando era novo, a solução passou por reprimir a minha identidade, “meter para dentro”. Seria algo privado que a mim, e só a mim, dizia respeito. Como poderia eu revelar à mulher que eu amo, que por mais feliz que estivesse (inclusive sexualmente), continuava a ter atracção por pessoas do meu sexo? Como podia eu amar e viver lado a lado, e continuar a desejar algo “proibido”? Mesmo confidenciar o desejo parecia traição.
Estando casados somos interpretados como heterossexuais. Pelo que ao não partilhar o meu mundo interior, era como se a minha identidade bissexual não existisse. “Ele é bom pai, bom marido”, “sou feliz a teu lado”, ouvimos dizer. É um bálsamo saber que eu, homem bissexual, posso fazer uma mulher feliz. É um privilégio construir família com filhos biológicos e viver lado a lado com quem amamos, e partilhar os momentos bons e menos bons da vida. Mas com o passar dos anos, o apagamento da identidade acarreta um custo grande. Vivemos a mentir por omissão. E um dia, o amor torna-se incapaz de superar a violência do apagamento. E torna-se real o risco de entrar em depressão ou procurar escapes – alguns benignos, por exemplo o trabalho, mas outros perigosos, o alcoolismo por exemplo. Outra alternativa é começar uma vida oculta – sou feliz e (emocionalmente) fiel, mas cai-se na tentação de viver a bissexualidade através do sexo anónimo entre homens, sem emoção, mitigando a dor do apagamento da identidade bissexual pela via do hedonismo.
É sustentável manter a bissexualidade escondida?
Poderá ser para alguns casais, da mesma forma que alguns são felizes com relações abertas e outros sem intimidade sexual. Com moderação e cuidado, ocultar um lado da vida pode não deixar evidência nem envolver mentiras. Mas não nos iludamos. Acarreta sempre custos para ambos. Para a mulher que, por intuição e leitura de pequenos sinais, sofre com a desconfiança que o bissexual não lhe é fiel e questiona se ele gosta dela. Uma insegurança agravada pelo facto da repressão da identidade poder tornar o bissexual mais distante. Mas esta distância não é porque o homem bissexual não ame a sua mulher. Mas porque lhe é difícil reconciliar carinho com o silêncio ensurdecedor entre os dois, vivendo o bissexual na dúvida constante também se a mulher gostaria dele se conhecesse quem ele é na plenitude.
Ainda que ocultar a bissexualidade crave uma cunha entre o casal, o amor pode sustentar uma relação feliz. Mas não deixa de ser solitário, para ambos. E transportar o peso do segredo e da dúvida, prejudica a autoestima dos dois. E para o bissexual, há o receio de um dia ser “apanhado”: uma doença venérea, uma mensagem por apagar, uma falta de líbido. E claro, a tecnologia hoje torna muito fácil o sexo casual. E com a facilidade vem o risco de comportamentos promíscuos, viciantes e patológicos onde se perde o controlo do nosso destino. Esses comportamentos interferem com a realização do amor, e tiram tempo e energia que poderiam ser canalizados para a família, trabalho, amigos, e lazer.
Está então um bissexual condenado a viver sozinho, ou encurralado numa vida oculta com risco iminente de implosão?
Não, porque, ainda que não seja óbvio, uma identidade bissexual e um comportamento monogâmico são conciliáveis. A bissexualidade pode ser vivida de diferentes formas. A concretização pelo acto sexual é uma forma. Mas não é a única. Infelizmente, pouco ou nada se fala como um homem bissexual pode viver em paz e feliz numa relação monogâmica.[1] Mas é possível quando há abertura para partilhar a identidade bissexual com a família; para se aceitar que na masturbação a solo, o estímulo homossexual pode prevalecer. E quando há plasticidade no casal para elevar a sexualidade a um nível de cumplicidade que permite praticar formas de dar e receber prazer raramente exploradas entre casais heterossexuais.
Como é que a sua mulher entendeu e aceitou a sua bissexualidade?
A aceitação da minha mulher da minha identidade bissexual é a maior prova de amor que posso ter, e essa prova alimenta o meu amor pela minha mulher num ciclo positivo. É fácil este caminho? Claro que não. Mas há alguma arquitectura relacional fácil numa vida a dois? A complexidade acrescida advém do facto do desejo (não concretizado) do bissexual estar lá por muito feliz que seja a relação. Esse desejo não desaparece. E essa consciência da complexidade do equilíbrio alimenta inevitavelmente, um grau de insegurança mútua de que um dia “tudo acabe”. Mas não é esta premissa válida para qualquer relação? Não é a monogamia um desafio também para os homens e mulheres heterossexuais?
Imagino que a necessidade do bissexual de se expor intrigue alguns heterossexuais, incomode, ou mesmo revolte outros. Mas compreendam: esta necessidade é fulcral para deixar de mentir por omissão e viver com autenticidade. Para pôr fim a tabus que muito sofrimento causam quando se é jovem. E no meu caso, também para celebrar a admiração e orgulho profundos que eu tenho pela minha mulher. Para sentir que sou digno dela. Não havendo nada a esconder, sou livre! É esta liberdade que produz uma força e paz que permite enveredar pela monogamia de forma sustentável, simbiótica, e recompensadora.
Em conclusão, a ideia de reconciliar uma identidade bissexual com um comportamento monogâmico não é uma escolha pelo “sacrifício” ou “sofrimento”. Pelo contrário, é apenas a arte do compromisso. E compromisso, acreditamos, é integral numa relação a dois que se procura rica, e existe no trivial assim como em dimensões nucleares. Honrar o compromisso é a maior prova de amor que se pode dar a quem se ama. Uma que cultivamos, dia após dia.
[1] Há mais informação disponível, curiosamente, sobre mulheres bissexuais em relações monogâmicas com homens. Por exemplo, a TED Talk, The Invisible Letter B, https://www.youtube.com/watch?v=Oa6AnOCQD50