É uma coincidência e afinal de repente toma um significado profundo. No nosso itinerário do Norte da Namíbia passamos primeiro pelo meteorito Hoba e poucas horas depois chegamos ao monólito de Spitzkoppe. Qualquer geólogo que esteja a ler isto provavelmente já percebeu onde quero chegar com a coincidência. Eu só me apercebi agora.
Um meteorito é um corpo que desce do Espaço e como tal não pertence à Terra; um monólito sai de dentro da Terra em direcção ao céu. As potencialidades poéticas da conjugação numa mesma viagem de duas realidades tão antagónicas são potentes. O meteorito pode ser um deus caído e expulso do seu meio pelos seus pares celestes; tal como um monólito pode ser uma tentativa desesperada de um colosso romper com a sua solidão e alcançar a companhia das estrelas. Um meteorito pode ser visto como um viajante que depois de muito vaguear pelo Universo chega por fim ao seu destino; o monólito pode ser um prisioneiro inconformado com a ditadura da gravidade que procura alcançar a liberdade ilimitada do espaço sideral.
Já alguma vez estiveste ao pé de um meteorito? Sentado em cima dele, apoiado para uma selfie ou simplesmente estático em silêncio a meditar na viagem que ele terá feito para chegar até aqui e estar hoje ao pé de ti? Este meteorito que temos à nossa frente é o maior que se conhece no nosso planeta. Terá cerca de 400 milhões de anos e chegou à Terra há oitenta. Uma vez, o Museu de História Natural de Nova Iorque tentou comprar o Hoba mas compreendeu que não conseguiria transportá-lo para a América. Com 60 toneladas de ferro, era demasiado pesado para sair da Namíbia. Que sorte, a nossa.
Seguimos viagem agora pela região de Damaraland – uma sucessão de paisagens descarnadas pela erosão dos milénios, um autêntico catálogo dos desertos possíveis. Se o que procuras é a possibilidade de escutares o grito primordial do planeta, o momento que antecipa a criação da vida na Terra, encontras aqui.
E chegamos por fim ao monólito de Spitzkoppe. Qualquer que seja a direcção de onde te aproximes, ficarás sempre subjugado pela imponência brutal deste relevo lançado para fora do planalto básico e monótono que o rodeia. Tocando os 1 700 metros, é o mais alto monólito do continente. Tal como eu te dizia atrás, parece querer romper com a superfície da Terra e partir para uma galáxia distante. Kubrick, quem sabe se por isso mesmo, filmou aqui as cenas mais emblemáticas do 2001 Odisseia no Espaço.
E porque quis trazer-te aqui? Esta montanha deve ser mágica. Tem qualquer coisa boa indefinível muito para além da compreensão da minha mente racional; um chamamento que me convoca com a força de uma dependência neurológica e ao qual tenho respondido ao longo dos anos. Sempre que posso, regresso. Monto a tenda entre os enormes calhaus que se soltaram da face do Spitzkoppe e rolaram para a planície no tempo dos dinossauros. Ao final da tarde afasto-me e ganho distância de modo a apanhar a totalidade da parede de 700 metros verticais iluminada com os tons de uma labareda petrificada – um espectáculo fugaz que, no entanto, se repete desde que este planeta iniciou a rodar sobre si próprio. Depois fico pela noite fora a observar as estrelas sem tentar identificá-las, como se elas ainda não tivessem nome, como se eu fosse a primeira pessoa a ter notado a sua existência.
E queres mesmo saber por que viajámos hoje entre um meteorito e um monólito? No caso do Spitzkoppe, encontrámos um dos componentes mais íntegros e essenciais saídos das profundezas da Terra – essa Terra que para nós, terráqueos, é o quilómetro zero de todas as direcções que se estendem pela vastidão sem fim do Universo. E o meteorito Hoba é o maior testemunho que conhecemos de um objecto que tenha viajado por essa vastidão ao nosso encontro. Tu, hoje, percorreste a distância que separa o zero da Terra do infinito do Universo.
(Opinião publicada na VISÃO 1368 de 23 de maio)