A propósito da exaltação que aconteceu nas redes sociais contra a coleção de roupa de criança da Zippy, entro no Instagram desta marca para conhecer a nova coleção denominada (e rapidamente demonizada) “Happy”. As imagens pareceram-me claras, assim como a mensagem: “Happy – Be you, be colorfoul, be free”. A coleção encaixa naquele rótulo que conhecemos desde o final dos anos 80 e início de 1990, criado para roupa para ser usada por homens e mulheres, e que na altura era chamada de moda “unissexo”. Para aqueles adultos que já não se lembram, uma das peças emblemáticas era a sweatshirt e ainda o hoodie (a sweat com capuz que está na moda de novo), geralmente vendida em cor cinza claro, cor raramente usada até então pela juventude. Na época, o termo criado para comunicar que havia roupa igual para rapaz e rapariga foi “unissexo”. Se tivessem dito à sociedade que se tratava de roupa “sem género”, não creio que a população entendesse com clareza. Mas o género não é uma palavra nova, não representa ideologia alguma, e qualquer pessoa ofendida com a roupa Happy saberá dizer com que género se identifica.
Trinta anos depois daquela moda unissexo, Portugal está a passar por um branqueamento de memória e por uma fase de conservadorismo tal, que quando uma marca lança roupa que pode ser usada por irmãos e irmãs, rapazes e raparigas, com cores e modelos comuns para ambos, isto passa a ser um escândalo a nível nacional. A coleção Happy não está a vender tutus de ballet para rapazes nem a incentivar o uso de maquilhagem suave para meninos. A marca não vai “ameninar” os vossos rapazes, se é disto que têm medo. Mas parece que a coleção foi entendida, por muitas pessoas, como se o estivesse a fazer.
Contudo, não vejo a população escandalizada com campanhas de moda de criança que têm sido veiculadas nos últimos anos que sexualizam completamente as meninas, apresentando-as como mini adultas maquilhadas, usando sapatos com algum salto e em poses provocadoras… Pelos vistos para a sociedade portuguesa sexualizar meninas não é um problema. Os pedófilos devem adorar estas campanhas com crianças adoráveis pelas quais se babam na rua ou no Metro quando as vêem nos outdoors, mas não vejo as vozes anti-Happy a criticá-las nem a manifestarem-se indignadamente contra.
Já a ideia de haver roupa que pode “ameninar’” os rapazes é que parece constituir um problema grave para muitas e muitos, embora esta não seja a proposta da roupa “sem género”. E esse “ameninar” não passa de uma fantasia que só acontece em algumas cabeças. A imaginação fértil gerada por medo e preconceito levou centenas de pessoas a tecerem críticas estapafúrdias e injustas contra o posicionamento claro de uma marca de roupa que não vive no século dezanove, nem no vinte. A moda “no gender” ou “sem género” – termo adequado à época em que vivemos – não é mais do que a continuação de um legado criado há muitos anos e que tem sido atualizado. Lembram-se daquele perfume da Calvin Klein, o One, criado para ser usado por ele e por ela? Não me lembro de haver críticas incendiárias ao perfume, mas lembro-me que ele foi um sucesso de vendas durante bastante tempo.
Vivemos um retrocesso civilizacional? Vi fotos e filmes da coleção Happy com crianças que usavam roupa colorida e divertida, que lhes permite liberdade de movimentos, e cujas peças parecem inspiradas em quadros de Mondrian. Nada mais. No site, ao abrir a imagem de uma t-shirt para conhecer melhor o artigo, li uma descrição que não gera dúvidas: “T-shirt de manga curta para menino e menina. Costas ligeiramente mais compridas. Edição Happy para mais diversão e prazer ao brincar.” Deixo esta sugestão a quem se ofendeu com a coleção: não tenham medo, dêem-se ao trabalho de conhecer os artigos na internet. No Instagram da marca, há um comentário de uma senhora que captou claramente o espírito da nova coleção: “Que boa ideia, assim dá para passar de filho para filha parabéns pela ideia.” Esta pessoa não complicou o descomplicado e percebeu as vantagens da proposta.
Esta coleção foi pensada para crianças que nasceram num período em que as gavetinhas morais do “azul é para menino e rosa é para menina” não fazem sentido, e em que a escolha de cores e de peças de roupa são uma extensão da livre escolha, da individualidade e da liberdade de expressão. Estamos mesmo em 2019? Ou voltámos à mentalidade de 1919, de há cem anos, quando a jovem costureira Coco Chanel foi a primeira mulher a usar calças, escandalizando a sociedade francesa por tal comportamento ser considerado vergonhoso? Era o que faltava uma mulher usar calças, a peça de roupa emblemática do ganha-pão da casa. Graças à sua ousadia, hoje as mulheres vestem calças sem questionar que o uso de calças nem sempre foi uma escolha para as mulheres, mas sim uma opção imposta aos costumes e mentalidade da época.
Independentemente do conservadorismo do início do século vinte, Chanel viu nas calças uma peça de roupa versátil e prática que tinha vontade de usar e comercializar, e foi exatamente isso que fez, quer a sociedade aceitasse ou não. Aliás, Chanel criou duas peças de roupa que são consideradas ícones da moda moderna até hoje, ambas “sem género” e que geraram controvérsia quando foram apresentadas à sociedade: calças para mulher (criando variações no corte e no estilo comparativamente às dos homens) e a camisola à marinheiro de riscas horizontais, que na altura foi desfilada por um homem causando grande escândalo, e que hoje é uma peça intemporal usada por mulheres e homens, que também ficou famosa por Picasso usar uma. Imagino as gargalhadas sonoras de Chanel se pudesse contar-lhe que hoje, no ano 2019, um século depois do seu posicionamento não preconceituoso e inovador, há gente escandalizada em Portugal porque uma marca lançou roupa “no gender” para crianças.
Lembro-me quando o artista Prince surgiu enquanto nova estrela da pop, vestido de lilás, com sapatos de salto, e colarinhos de renda. Foi criticado, particularmente por homens que o chamavam de maricas. Um heterossexual não veste rosa nem lilás, pensariam eles. Mas a verdade é que Elvis Presley, o rei do rock, já usava camisas cor de rosa nos anos 50 e conduzia o seu invejável pink Cadillac, enquanto os machões da época engoliam em seco diante desta exibição rara de masculinidade. Ou Madonna, que também quebrou estereótipos ao usar meias fishnet, um artigo conotado com prostitutas e que hoje qualquer mulher usa com saias ou debaixo dos jeans rasgados.
Não faltam exemplos de pessoas que criaram tendências e mudaram mentalidades, a nível global, através da forma livre como se vestiam e expressavam ao mundo a sua individualidade, a sua autenticidade. Em Portugal, o grande António Variações foi a prata da casa neste âmbito.
Mas não pensemos só os artistas usam peças “no gender” por serem irreverentes ou exuberantes: pensemos nos toureiros que usam meias e leggings rosa choque coladas ao corpo (ficam com uma silhueta bastante feminina), ou nas inúmeras vezes que assistimos ao Príncipe Carlos em eventos solenes em que a sua identidade real era reforçada através do uso do tradicional Kilt, que não passa de uma saia. Será que os ofendidos com a coleção Happy não querem uma Madonna, um Variações ou um Príncipe Carlos em casa?
Não tenham medo da liberdade de expressão nem vergonha da autenticidade. O azul escuro que herdamos do passado está démodé há muito, enquanto as cores do arco-íris são muitas e nunca passarão de moda.
Não construam muros. Be Happy. Sejam felizes.