Quando no final da década de 90 comecei a trabalhar com mulheres vítimas de violência o crime não era público, só existam 2 ou 3 casas abrigo no país, era comum as forças de segurança não registarem as queixas e as ONG’s, como a AMCV, a APAV, a APMJ e a UMAR, lutavam para consolidar o tema na agenda política.
Hoje, este fenómeno não só é crime público, como há um artigo autónomo no Código Penal e uma lei específica para a violência doméstica, há uma rede de 39 casas abrigo e 26 acolhimentos de emergência, existem serviços especializados de atendimento um pouco por todo o país, até há uma app para telemóvel que permite aceder rapidamente a respostas, há forças de segurança especializadas, salas de atendimento à vitima e avaliação de risco.
Contudo, este ano contam-se já 24 mortes, no ano passado foram registadas pelas forças de segurança 26.713 ocorrências, foram identificadas nas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens 2.000 crianças em risco por violência doméstica e estiveram acolhidas em casas abrigo e respostas de emergência 3.116 mulheres e crianças.
Porque é que este crime em particular, que representa o segundo crime mais participado contra pessoas, que leva todos os anos à morte de mulheres, cuja análise retrospetiva do homicídio no âmbito da violência doméstica aponta falhas na dinâmica institucional e na decisão judicial, não encontra no sistema uma resposta eficaz na penalização dos criminosos?
A Constituição portuguesa tem um capítulo sobre direitos, liberdade e garantias pessoais que prevê um conjunto de direitos na aplicação da lei criminal e nos limites das penas e medidas de segurança que, evidentemente, são desejáveis num Estado de Direito. Mas no que diz respeito ao crime de violência doméstica, este princípio constitucional tem criado dificuldades na justeza da justiça.
Acontece que este crime se desenrola em contexto de relações de intimidade, familiares e de coabitação, em que a maior vulnerabilidade não está do lado de quem acusa, mas sim de quem é acusado. O resultado objetivo desta situação tem sido as vítimas fugirem das suas próprias casas, porque se encontram muitas vezes em risco de vida, e ficarem muitas delas institucionalizadas em casas abrigo, que só deveriam servir casos extremos e que se tornaram a primeira solução, legitimada, aceite como a solução óbvia, sem que as instituições públicas compreendam a perversidade do sistema.
O mais espantoso é que a Lei da Violência Doméstica já traduz para o articulado a natureza e especificidades deste crime, abrindo, sempre dentro dos princípios constitucionais, a possibilidades de exceção face à lei geral, nomeadamente no que diz respeito à detenção sem flagrante delito, mas que ao que sabemos pouco é utilizada, porque o que está quase sempre presente na decisão é, em primeiro lugar, o princípio constitucional de proteção do suspeito e não a tal excecionalidade que envolve este crime em particular.
Quanto à aplicação da medida urgente de afastamento do agressor que a lei prevê, se alguma vez aconteceu, foi de forma muito residual, o que traduz a opção dos juízes e das juízas de deixar o agressor na residência.
Continuamos a encarar a violência doméstica, não como o crime que é, mas como um problema social, e por isso no que diz respeito à proteção legal das vítimas e à punição dos criminosos os resultados são inaceitáveis, apesar das participações por ano às forças de segurança serem acima das 20.000, as condenações com cumprimento de pena efetiva, em 7 anos (2010-2017), não ultrapassaram as 723 e dos 29.711 inquéritos finalizados, 20.470 foram arquivados e apenas foi deduzida acusação em 4.465.
A verdade é que a ação da justiça deixa estas mulheres e crianças desprotegidas, prevalecendo a impunidade do agressor que muitas vezes ainda consegue fazer valer direitos parentais sobre crianças que estão acolhidas em casas abrigo, porque há uma corrente de “mentes iluminadas” dentro do sistema, que defende que apesar de espancarem e insultarem as mães, continuam a ser bons pais.
O resultado de tudo isto é que os criminosos continuam em casa, na sua vidinha, enquanto as vítimas, mulheres e crianças, andam fugidas, a serem institucionalizadas, como se fossem elas as responsáveis pela situação em que se encontram.