O A. é alto e magro, tem quinze anos e muitas borbulhas.
Tem também dez negativas e muitas reprovações. Tentou asfixiar a mãe. Ela chamou a polícia mas acabou por não apresentar queixa. Faltou-lhe a coragem de entregar o filho à polícia. Eu e ele tivemos uma conversa há dias. Foi um diálogo duro e terno, num jogo de (des)equilíbrios. Ele, perdido, quase nunca me olhou de frente. Eu insisti: Olha para mim quando falo contigo, se faz favor!
A medo, A. foi virando o rosto devagarinho para mim. Quando me olhou de frente, vi uns olhos grandes, magoados, cheios de dor. Viu desde pequeno o pai agredir a mãe. Um pai que já lá não está. Há muito que se foi… A mãe tem outro companheiro. E outros filhos. Quando ela estava grávida, um dia A. deu-lhe um pontapé na barriga. Agora tentou asfixiá-la. Perguntei-lhe porquê. Respondeu-me, com os olhos molhados: por momentos cego, stora, deixo de ser eu, transformo-me… A. precisa de apoio. De apoio urgente. Mas a escola não tem apoio suficiente para lhe dar. São poucos os psicólogos e muitos os casos que gritam por ajuda. Eu agi por intuição. Vou sempre pelos afetos. Mas temo que estes já não cheguem para tudo.
Quer ser guarda-redes, o A.
Por vezes, apetece-me fugir dali. Desaparecer e nunca mais voltar.
Trabalho numa escola onde o dia a dia decorre mais ou menos assim. Num precário equilíbrio entre a ordem e o caos, o Bem e o Mal, o certo e o errado.
Há dias o F. Chegou atrasado à aula das oito. Já o tinha avisado duas vezes, logo à terceira levaria falta. Desculpe o atraso, stora! Ontem à noite prenderam o meu pai. Tinha havido rusga no bairro… Claro que lhe desculpei o atraso.
Ficámos todos a conversar por algum tempo sobre as rusgas que há no bairro, alheados do nome predicativo do sujeito e das orações subordinadas que para pouco ou nada lhes servem nesses dias conturbados.
Hoje três miúdos foram apanhados pelo pica, como eles ternamente apelidam o revisor do autocarro. São cento e oitenta euros de multa por um bilhete que custa muito menos. Indignada, perguntei-lhes por que não tinham comprado o passe. Se pagar o passe não posso comer, stora. Prefiro arriscar… E arriscam, arriscam diariamente o seu futuro.
Outra aluna que gosta de ficar a conversar comigo quando a aula termina, sabendo-me preocupada com ela, confessa: Há três anos que reprovo, stora. Pronto, já decidi: vou ser mendiga… Uma outra aluna, já de saída, olha para ela e sem recear a minha presença, atira-lhe apenas: Mendiga ou puta… Repreendo-a! Repreendo-as! Ficamos as três a conversar.
Os poucos alunos que terminam o décimo segundo ano estão a trabalhar no Pingo Doce, na Zara ou na Worten. Conto pelos dedos de uma só mão aqueles que seguiram o ensino superior.
Entre duas aulas, há dias encontrei uma ex-aluna repetente no corredor. Estava furiosa com a professora. Tinha-lhe pedido para ficar com o gorro dentro da aula e a professora não tinha permitido. Lembrei-a:
– Tu sabes que não é permitido estar de gorro, boné, capuz ou chapéu dentro da sala.
– Pois, eu sei, stora… mas ontem eu tive de cortar o cabelo curtinho por causa dos piolhos e não queria que ninguém soubesse.
Por vezes apetece-me fugir dali. Desaparecer e nunca mais voltar. Mas fico… Sorrio-lhes. E quando as palavras se revelam vãs, ficam com o afeto que lhes dou. E espero que guardem algum conhecimento, também.
Sonho que um dia, acabada esta luta, virá a paz.