A Google diz que tenho 3592 fotografias da minha cara. E não passo a vida a fazer selfies, a maioria não fui eu que fiz, sou eu que as tenho. Também me diz que tenho 940 imagens com a Lili (a minha cadela mais pequena). Esta é uma das novas funcionalidades do Google Photos que tantos usamos para guardar as nossas memórias. Agora tenta também identificar os animais, já o fazia com as pessoas e agora faz o mesmo com cães, gatos e outros animais. Diga-se de passagem, ainda faz um trabalho sofrível no que diz respeito aos animais mas, pela minha experiência, com os sistemas de inteligência artificial que usam vai melhorar rapidamente. Depois, categoriza todas as fotografias que fiz desde 2006 em compartimentos como “pontes”, “monumentos”, “praias” e se eu fizer uma busca por “vinho” ou “tractores” aparecem todos os que registei. Obviamente, estão também catalogados automaticamente todos os sítios do mundo onde fiz fotografias, mesmo com máquinas fotográficas sem GPS – a catalogação é feita por semelhança com outras imagens de outras pessoas.
Do outro lado do Atlântico, a Apple respondeu oficialmente às perguntas do Senador Al Franken, preocupado com a privacidade de cada um de nós ao usar o próximo iPhone X (por cá lê-se “iPhone Dez” e não “iPhone Ten” como já vi escrito). É o primeiro aparelho que identifica o utilizador, de forma segura, com reconhecimento facial. A Apple respondeu com o que já se sabia: Que a imagem do utilizador é tratada por algoritmos, não é guardada e não é enviada para fora do telefone. É uma operação matemática que vai servir para identificar o utilizador de forma que podíamos considerar anónima, embora expressar isto seja muito estranho.
A relação entre os dois factos faz-se através da nossa tendência para nos desviarmos da questão importante. Ou seja, o senador está muito preocupado com aquilo que parece óbvio: pomos a cara à frente de um telemóvel e ele identifica-nos. O senador, que por acaso foi um comediante com algum sucesso e vende muitos livros, estará eventualmente a fazer o seu papel, mas também a dar nas vistas, que é igualmente um dos papéis dos políticos.
O problema quase se coloca ao contrário. O que a Apple diz, ou pelo menos deixa entender, com a sua resposta, é que se os senadores, ou o governo dos Estados Unidos, ou qualquer outro governo ou organização, quiser abrir a informação de um iPhone X sem dispor das chaves, a empresa construiu a coisa de tal maneira que, supostamente, mesmo que queira, não a pode dar. Isto na ausência do dono do telemóvel, porque na sua presença basta que deliberadamente se passe o telefone à frente da cara dessa pessoa mesmo que não queira disponibilizar o acesso.
O que me parece muito mais interessante para os serviços que possam estar interessados na recolha de informação sobre cidadãos, legítima ou ilegitimamente, é o acesso a bases de dados como a que referi. A verdade é que muitos de nós vamos catalogando as nossas imagens e quem está nelas. Com um click podemos ver todas as imagens que temos de uma aldeia, de uma certa praia ou de um velho amigo. Se fizermos as coisas bem, e cada vez mais vamos fazer, os algoritmos da Google sabem encontrar tudo isto em fracções de segundos. E a Apple faz o mesmo ou perto disso, não no iPhone X mas nos seus álbuns de fotografias. Com esta informação em quantidade suficiente, quase é possível saber mais sobre uma pessoa do que o próprio sabe. Juntemos a isto as nossas mensagens de correio electrónico, o Facebook, Linkedin, Instagram, Twitter e por aí fora, para poder confirmar as nossas opiniões, e o quadro será mais completo do que nós próprios conseguimos fazer se quisermos escrever uma autobiografia.
Com estes, escolhemos não nos preocupar demais, o que nos vão dando em troca é suficiente para perdermos alguma privacidade e a verdade é que a maioria de nós nunca sofrerá nada por o fazer. Mas há sempre minorias e aí sim, espero bem que os senadores deste mundo se preocupem verdadeiramente com o que é feito com os nossos dados. Até agora, têm feito um péssimo trabalho.