Resolvi escrever esta crónica em plena polémica sobre o relançamento na Alemanha de “Mein Kampf”, a bíblia nazi que Hitler assinou. Lembrei-me do extraordinário neurocientista H. H. Kornhuber que morreu incógnito, sem nunca ter conhecido a glória que merecia, também provavelmente pelas ideias nazis a que foi fiel em toda a sua vida.
Devo declarar ao leitor que tiver a paciência de me seguir nesta crónica que não há nada, mas mesmo nada com que simpatize no ideário nazi, particularmente no racismo, no anti-semitismo, na eugenia, na superioridade ariana, no culto do líder e na prática anti-científica do ocultismo. Contudo, e apesar de tudo isto, conhecendo a biografia científica de H. H. Kornhuber não posso deixar de pensar como também no mundo científico se formalizam formas subtis de censura.
Ainda bem que “Mein Kampf” voltou a ser editado e distribuído. A sua leitura crítica, que a maioria dos leitores fará, certamente permitirá consolidar a ideia da liberdade como projecto humano que se opõe a todos os totalitarismos, de que foi exemplo o abjecto totalitarismo nazi.
Hans Helmut Kornhuber falecido em 2009 é hoje um desconhecido neurologista alemão. Tal como Emmanuel Kant nasceu em Koenigsberg (antiga Prússia Oriental), lamentavelmente arrasada do ponto de vista arquitectónico e cultural, sendo hoje uma obscura cidade industrial Russa com o nome Kalininegrad. Tal como Kant dedicou a parte mais importante da sua vida de investigador a estudar a questão da liberdade e da livre expressão da vontade.
Para isso, H. H. Kornhuber construiu uma das mais brilhantes experiências em neurociência. Em resultado dessa experiência publicou em 1965 um artigo seminal em conjunto com o seu aluno de doutoramento Lüder Deecke, em que apresentou o conceito de “Bereitschaftspotential – BP”, o qual pode ser traduzido por “Potencial Pré-motor”.
O Potencial Pré-motor é uma onda electrofisiológica medida por um aparelho de Electroencefalografia que expressa a actividade cortical que precede qualquer movimento muscular voluntário (este avaliado por electromiografia). Ao demonstrar que a actividade do córtex pré-motor antecedia os movimentos voluntários, H. H. Kornhuber descobriu o sinal cerebral da vontade que antecede a acção.
Desta experiência disse Sir John Eccles (Prémio Nobel da Medicina em Neurociência) “Há um paralelo maravilhoso entre esta impressionante e simples experiência e as experiências de Galileu Galilei que investigou as leis do movimento do Universo com bolas de metal num plano inclinado”.
No entanto, para H. H. Kornhuber a glória nunca chegou, talvez pelo seu passado de jovem adolescente voluntariamente inscrito no exército alemão que participou na derrocada da frente oriental em 1944 contra o exército soviético. Ironicamente foram os anos como prisioneiro na Sibéria, entre 1944 e 1949, que lhe permitiram iniciar os profundos estudos filosóficos que o motivaram posteriormente para o estudo “neurocientífico da liberdade”, liberdade essa, que tanto lhe faltou nesses cinco anos de cativeiro.
Paradoxalmente um homem que tanto procurou a demonstração da expressão da vontade no córtex cerebral e tanto contribuiu para a ideia da liberdade no ser humano manteve-se sempre politicamente fiel à ideia de uma sociedade regida pelo ideal nacional-socialista.
Com a descoberta de H. H. Kornhuber ficou demonstrada a raiz biológica da vontade que entre outros argumentos permite fundamentar a origem do livre arbítrio e uma teoria não determinística da personalidade.
Com este argumento também é possível entender a influência da vontade individual na construção de cada ser, o que permite sem qualquer dúvida perpetuar a ideia da responsabilidade individual que afinal tem caracterizado e sustentado a sociedade Ocidental.
Extraordinária foi mais uma vez a relação entre a simplicidade e beleza da experiência de Kornhuber. Como ele próprio afirmava nós não inventamos nada, limitamo-nos tão só a colectar (conhecer) da natureza as leis que nos regem e a isso damos o nome de ciência.
Presumo que se H. H. Kornhuber fosse vivo estaria satisfeito pela reedição alemã de “Mein Kampf”. O paradoxo da sua vida como apoiante nazi e investigador da “liberdade humana” aí está para demonstrar a fragilidade do ser humano face ao poder que as convicções e crenças têm sobre todos nós.