Entre jornalistas há uma frase que se repete quase todos os dias e que é mesmo verdade: a realidade supera sempre a ficção. É raro o dia em que não paro por um momento, perplexa com qualquer acontecimento incrível, por vezes quase com vontade de me beliscar a mim própria.
Que me desculpem os grandes romancistas mas as histórias mais impressionantes que já li aconteceram de verdade e os mais extraordinários personagens com que já me cruzei eram todos de carne e osso.
Vem isto a propósito de 438 Days, um livro lançado esta semana no mercado internacional. É o resultado de mais de 40 entrevistas do jornalista Jonathan Franklin, do The Guardian, a um pescador que sobreviveu 14 meses no mar, sem motor, sem GPS, sem rádio e sem comida. Foi sugado para alto mar por uma tempestade e, ao longo de 12 mil quilómetros, no meio do Pacífico, só viu mar, e mar, e mar, sem esperança à vista. Mas nunca se rendeu. Nem mesmo quando o seu companheiro de pesca desistiu de lutar pela vida, dois meses depois daquela manhã de novembro em que zarparam da costa mexicana, para o que previam ser mais um dia normal de faina.
Salvador Alvarenga sobreviveu bebendo água da chuva e sangue de tartaruga e comendo alforrecas e pedaços de aves marinhas cruas. A solidão, a par da fome, era um inimigo poderoso. Por isso, o pescador fingia estar num mundo paralelo, conversando com amigos imaginários, obrigando-se a andar pelos sete metros do seu convés, como se passeasse por caminhos de cidades e florestas. Sabia que se parasse, e se entregasse à tristeza, seria o seu fim.
É impossível não sentir admiração pela determinação e capacidade de resistência deste pescador. Na VISÃO desta semana contamos mais detalhes sobre esta odisseia e juntámos outros quatro casos de sobrevivência incríveis, de quem desafiou os limites perante a morte.
As suas histórias emocionam-nos, inspiram-nos mas também nos interpelam: o que seríamos capazes de fazer, numa situação-limite, para sobreviver? Daríamos a cara à luta ou sucumbiríamos ao desespero? E no dia-a-dia, valorizamos a vida que temos e mobilizamo-nos para sermos melhores ou caímos na armadilha do descontentamento, lamentando sempre não ter mais? As respostas só podem ser encontradas no interior de cada um de nós, por cada um de nós.
Olho com a mesma admiração para o pescador Alvarenga como para os pais que caminham milhares de quilómetros com os filhos pela mão, fugindo da guerra. Ou para as famílias que, morando tão perto do meu bairro, inventam histórias novas de embalar e se deitam às seis da tarde, para os filhos não estranharem não haver luz em casa. Ou passam noites nas bombas de gasolina, a encher garrafões de água para os banhos, ou se juntam aos sem-abrigo, esperando a volta das carrinhas da sopa dos pobres. O que faríamos nós para garantir um tecto digno e a comida básica aos nossos filhos?
Relembro que está a chegar o Natal e que três em cada dez crianças deste país vão para a escola sem nada no estômago – a única refeição que têm por dia é o almoço que ali comem, muitas vezes pago pelos professores, do seu bolso. A situação agravou-se de tal forma que a maioria das escolas já nem fecha nas férias. Passou a ser a “norma” e assim voltará a ser durante estes dias de “Festas” que se avizinham. Centenas de refeitórios vão estar abertos para que estas crianças não fiquem duas semanas privadas de um bem tão básico como a alimentação. É uma boa medida mas, ao mesmo tempo, não consigo esquecer o olhar dos meninos que vi numa destas cantinas, durante um período de férias, comendo o seu prato de sopa. Eles sabem que são diferentes dos amigos, que estão de férias em casa, e invejam já não apenas os seus ténis de marca ou o último videojogo da moda, mas a comida que eles têm no frigorífico.
A história que mais me doeu testemunhar passou-se num dos bairros pobres dos arredores de Lisboa. Num café em frente a uma escola, entrava todas as manhãs uma senhora, com um ar visivelmente incomodado. Dizia bom dia à dona, retirava discretamente um pacote de açúcar do balcão e saía rapidamente. Umas semanas mais tarde, a dona do café ganhou coragem e perguntou a esta cliente insólita, que nunca tinha consumido nada no seu estabelecimento, para que precisava ela daquele pacote de açúcar. E a senhora explicou que o dava ao seu filho de 8 anos antes de ele entrar na escola. Sem dinheiro para lhe dar pequeno-almoço, despejava aquele pacote de açúcar na boca do menino, para ele ter alguma energia durante a manhã. Esta comerciante, com os seus próprios problemas económicos a tirarem-lhe o sono, abraçou-se a esta mãe, chorando como há muito não fazia. Não tinha meios para lhes resolver a vida toda mas uma coisa podia fazer: o menino passaria a ir com a mãe ao café tomar o pequeno-almoço, todos os dias.
São gestos como este que me reconciliam com o mundo. Já todos lemos centenas de notícias sobre o inferno em que vivem tantas pessoas mas, em vez de ficarmos vacinados contra o sofrimento dos outros, desensibilizando-nos, é fundamental que consigamos colocar-nos no lugar dessas pessoas e pensar no que faríamos, nas mesmas circunstâncias. A empatia é o primeiro passo para a compaixão e para a valorização da vida. E só a partir daí poderemos sobreviver aos horrores do mundo, fazendo frente a todas as tempestades – seja no sentido literal ou figurativo.