Conheci o Vergílio Ferreira quando tinha 12 anos. Foi meu professor de Português no Liceu de Camões. Já tinha sido professor da minha mãe, era amigo do meu avô e havia outros laços de amizade envolvidos com a minha família, pelo que já ouvira falar dele com frequência e sabia que era um escritor importante, tanto quanto uma criança de 12 anos possa saber o que significa ser escritor. Foi em 1969.
Passados quase 50 anos, que posso eu dizer deste homem, para além de questões pessoais? É muito difícil não cair na particularidade emocional. Mas julgo que fará sentido distinguir 3 dimensões para o seu legado.
A primeira é a mais conhecida: a da literatura, essencialmente do romance. Não é só a mais conhecida, é também a de mais fácil acesso para quem não conheça; basta ler os seus romances. Proponho que se comece pelo «Nítido nulo», seguido de «Rápida, a sombra», depois «Aparição» e, em seguida, «Em nome da terra», ou «Na tua face». Os conhecedores da obra de V. F. acharão esta minha escolha estranha, mas paciência. Aviso os estreantes que não procurem histórias, enredos, psicologia de personagens ou qualquer suspense. O Vergílio defendia o romance «vertical», que nos percorre emocionalmente de alto a baixo, e não o romance «horizontal», que nos leva à curiosidade de um qualquer desenlace. O leitor deverá ler como saboreia uma iguaria divinal, ou seja, com vontade de desfrutar de cada momento e desejar que esse momento nunca acabe. A leitura de um romance de V. F. cria-nos interrogações, perturba-nos emocionalmente, faz-nos sofrer, (ocasionalmente) diverte-nos e pode deixar um rasto de melancolia. Mas, acima de tudo, deverá o leitor deixar-se embalar pela beleza da forma – da escrita magistral da língua portuguesa –, enquanto acompanha a beleza do que vai lendo.
A segunda dimensão é menos conhecida e também de mais difícil acesso: o Vergílio foi um grande pensador. Esse pensamento está patente em livros por vezes difíceis (vários volumes do «Espaço do invisível», «Invocação ao meu corpo», «Do mundo original», «Pensar», «Escrever») e também nos seus diários («Conta-corrente»). É difícil explicar a essência do seu pensar em tão reduzido espaço, mas diria que o V. F. amou, acima de tudo, o Homem. Este era, para ele, o centro de tudo. Todos os outros temas (a morte, Deus, etc.) giraram em torno da sua filosofia do Homem. Até a arte: Vergílio vivia dividido entre o pensar e o sentir e, por essa razão, deu, no domínio do pensar, enorme relevo ao sentir, ou seja, à reflexão sobre a arte enquanto essência da humanidade. Posso assim dizer que o máximo do Homem (e da humanidade – ou seja, das características humanas) encarna duas missões: a arte e o humanismo. O humanismo enquanto dever necessário, circunscrito às limitações do possível no mundo de «aqui». E significando «ser pelo homem, pela sua dignificação, pela justiça, pela harmonia em liberdade». A arte enquanto devir do homem – isto é, aspiração ao máximo («só o que é de mais é que é bastante») para o qual ele tende –, projectando-o num mundo outro, mais além, num «limite impossível», num «excesso» de ser. «Há a violência de sermos, a flagrância absurda de existirmos, de nos morar o necessário e o eterno».
Mas é o seu humanismo que nos leva à terceira e menos conhecida das três dimensões. Que, infelizmente, já não tem acesso possível. V. F. foi mais do que um professor. Foi um pedagogo, um mestre, um formador. Tentou fazer, dos seus alunos, verdadeiros homens; os homens do seu humanismo. Já o disse, nestas crónicas: foi ele que me ensinou a pensar. E pensar, para ele, significava esforçarmo-nos por criar a «nossa filosofia» (textual). Por procurarmos a nossa verdade, duvidando do que nos impingem, interrogando (dizia sempre: «Os meninos devem ter a mania dos porquês…»), lendo, conhecendo o mundo. Em «Aparição», escreveu: «Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita.» À boa maneira existencialista, acreditava que cada homem pode ser o que a sua individualidade reflexiva e sensível determina e não o que outros planearam que fosse. Por outras palavras, um homem não é definido por um passado que lhe construíram, mas pelo futuro que decide para si: «Para que percorres inutilmente o céu inteiro à procura da tua estrela? Põe-na lá.»
No dia 28, quinta-feira, Vergílio Ferreira faria 100 anos. E eu vou afogar em champanhe o festejo do milagre da sua existência e as saudades que dele sinto.