Atravessar o canal entre o Faial e o Pico no “ferry” Cruzeiro do Canal, ouvindo dos altifalantes do navio a música tradicional açoriana, “Pezinho do Pico” (“Eu fui ao Pico, piquei-me,/ Ai, sim! Piquei-me, piquei-me lá num picão,/ O pico nasce da silva,/ Nasce da silva e a silva nasce do chão. ”), rumo aos ilhéus da vila da Madalena, com mar chão e cor de espadarte, e ver a montanha vulcânica em frente, aquietada à nossa espera, é, verdadeiramente, de cortar a respiração. Ela lá está nos seus majestosos 2351 metros de altitude, belissimamente assombrosa, segurando a segunda maior ilha dos Açores, como uma mãe poderosa e firme segura e protege a filha no regaço.
Caracteriza este canal, que teve a atenção de Vitorino Nemésio, alguma bipolaridade no comportamento das suas águas. De calmas e confiantes, rapidamente se transmudam em revoltas, tiranas e medonhas, com ondas alterosas que fazem as agonias de marinheiros e de faialenses que trabalham no Pico, como de picarotos que trabalham no Faial e que, por força do seu destino profissional de todos os dias, têm forçosamente que atravessar duas vezes por dia essa perigosa estrada marítima de oito mil metros.
Ali, naquela geografia insular, quer se queira quer não, há que se ser diariamente lobo-do-mar.
Recordo Nemésio numa passagem do seu romance Mau Tempo no Canal: “Havia no feitio picaroto a paz e a tranquilidade dos fortes, qualquer coisa que não era bem português … Gente alentada, singela, de falas e gestos mansos, mas cega a tudo e a todos à voz de baleia! Baleia!”
O Pico foi terra de baleação desde metade do século XVIII aquando da chegada dos navios baleeiros dos Estados Unidos da América. Algumas das embarcações baleeiras açorianas terão sido réplicas de outras americanas cujo modelo foi importado pela família faialense Dabney. E daí terá nascido o açoriano bote baleeiro, também denominado de “bote de boca aberta”.
Após a captura com o uso do arpão artesanal, o cetáceo era desmanchado para extração do óleo (azeite de baleia), do “âmbar gris”, muito utilizado em fixante de perfumaria, e da carne. Quase tão importante como o óleo, o toucinho era derretido para iluminação das casas e dos ossos se produzia farinha.
Esta ilha, à data do seu descobrimento foi batizada por ilha de São Dinis; também aparece em alguma cartografia como ilha dos pombos.
Referiu Frei Diogo de Chagas quanto ao seu povoamento que terá sido inicialmente povoada por Fernando Álvares Evangelho, “o qual vindo a buscar a tomou pela parte do Sul, (…) saltou em terra onde se diz o penedo negro, e com ele um cão que trazia, e o mar se levantou de modo que não deu lugar a ninguém mais saltar em terra, e aquela noite se levantou vento, de modo a que a caravela no outro dia não apareceu, e ele ficou na ilha com seu companheiro, o cão; e nele esteve um ano sustentando-se da carne dos porcos, e outros gados bravos, que com o cão tomava (pois o infante quando as descobriu, em todas mandou deitar gados, avia nelas, quando depois se povoaram, muita multiplicação deles) (…)” (CHAGAS, Diogo (Frei). Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores. Secretaria Regional de Educação e Cultura/Universidade dos Açores, 1989.)
O Pico está dividido administrativamente em três concelhos: Madalena, que detém o aeroporto e porto principal da ilha, Lajes, virada a sul, e São Roque, frente a S. Jorge.
Muita da riqueza económica desta ilha assenta, desde o tempo do povoamento, na vinha e produção de vinhos, apreciados em diferentes latitudes. Quem já não ouviu falar no velho verdelho do Pico e mais recentemente nos novos vinhos Maçanita, com projeção nacional e internacional. O mais recente tinto picaroto, “Saborinho”, pertence a uma casta que faz parte do antigo encepamento dos Açores. Este vinho é presentemente considerado o terceiro melhor tinto de Portugal. Há muitas outras estrelas, entre as quais, o “Arinto dos Açores”, da Cooperativa do Pico, e o Verdelho da “Azores Wine Company”, tido como um dos melhores brancos do ano. Há ainda o vinho de cheiro, cheio de potencialidades comerciais, um exemplar do “vinho popular” que estará mais ou menos a par do vinhão do vinho verde. Para Maçanita, o impacto que teriam na economia dos Açores os quase 500 hectares espalhados no arquipélago açoriano com vinhedos “seria incomensurável”. Não nos esqueçamos que António Maçanita, filho de pai açoriano, foi eleito em Portugal o Enólogo do Ano.
Ver o Pico com olhos de ver é ver mais alto. É ver do alto da sua majestosa e mágica montanha, onde a quase dois quilómetros e meio de altitude se introduz o dedo numa fenda da rocha e se apanha uma forte peladura. O vulcão é quente até ao cimo. E do topo, avistar o Faial, São Jorge, a Graciosa e a Terceira, teimosamente a serem rocha e terra entre o mar e o céu, extasia e apaixona.
Ver o Pico com olhos de ver é visitar o Museu do Vinho no Convento das Carmelitas da Madalena, o Museu da Indústria Baleeira em São Roque, o Museu Regional dos Baleeiros e o Forte de Santa Catarina nas Lajes, bem como os moinhos, conventos e igrejas disseminados por toda a ilha.
Ver o Pico com olhos de ver é participar nas festas estivais da Semana dos Baleeiros, nas Lajes; no Cais de Agosto, em São Roque; na Festa de Santa Maria Madalena, na Semana das Vindimas, e, por toda a ilha montanha, nas festas em honra do Divino Espírito Santo.
Ver o Pico com olhos de ver é deixarmo-nos entregar à telúrica intensidade da mãe natureza da ilha, que se expressa no verde dos muitos matos, na vertigem da montanha parda, na presença constante do mar azul metal, no negrume forte da rocha basáltica, no mergulho da volumosa cauda da baleia, no choro do vinho nos lábios… Ainda, é ter nuvens aos pés e tocar o céu.