Há 60 anos que a água sobe. Há 60 anos que o solo se esboroa. Há muitos mais que os descendentes dos indígenas do delta do Mississippi ocupam a Isle de Jean Charles, uma cada vez mais pequena ilha a sul de New Orleans. Agora, conta o New York Times, é altura de abandonar o cemitério, as nogueiras-pecãs, as bananeiras, as roulottes desmazeladas e as casas enferrujadas que ainda ocupam o que resta de Jean Charles. Os 60 moradores da ilha são os primeiros refugiados ambientais dos Estados Unidos da América: encontram-se numa das zonas do mundo onde a erosão da linha da costa é mais rápida. Desde 1930, uma área equivalente ao distrito de Portalegre foi invadida pelas águas quentes do Golfo de México.
Desde 2002 que os planos para relocalizar os habitantes de Jean Charles têm falhado. Mas nem as paredes de betão que os engenheiros norte-americanos planeiam construir à volta do delta, para evitar a erosão e as cheias cada vez mais frequentes, impedirá o destino molhado da ilha. Atualmente, com uma frequência assustadora, a estrada que liga a ilha a terra firme é inundada, impedindo os moradores de ir trabalhar, de ir à escola, de sair para uma consulta médica. Os diques e as paredes de contenção das cheias que estão planeados vão deixar a ilha de fora.
O desastre de Isle de Jean Charles é conhecido há muito. Quando há mais de uma década visitei o delta do Mississippi, a universidade de New Orleans já há muito avaliava as taxas de erosão, o seu impacto no território e as medidas de contenção que estavam ao alcance da administração, para as mitigar. E as causas também eram conhecidas: abertura de canais para corte e transporte de árvores, primeiro, a indústria petrolífera, depois, e, por último, a construção de barragens ao longo do curso dos principais rios, que evitam a passagem dos sedimentos necessários à manutenção das ilhas-barreira do delta.
Além deste panorama específico do sul do Estado de Louisiana, para o fenómeno que agora atinge a população da ilha contribui ainda o stress costeiro causado pelo lento mas persistente aumento do nível médio das águas do mar. Os furacões que compassadamente atingem a costa sul dos Estados Unidos da América, perante um ecossistema doente e sem as suas proteções naturais, causam uma destruição muito maior. Sem a vegetação e as ilhas que antes impediam o avanço das águas, o efeito das tempestades é muito mais devastador.
Até 2050, avisa a ONU, entre 50 a 200 milhões de pessoas – 20 vezes a população portuguesa –, podem perder as suas casas e propriedades em eventos relacionados com as mudanças climáticas. Se os governos europeus se acagaçam com umas centenas de milhares de sírios, iraquianos e etíopes que demandam as portas do Velho Continente, como será quando esse número for multiplicado por 200?
Que um dos primeiros programas de relocalização de uma comunidade inteira – mas pequena – aconteça nos Estados Unidos da América, tem a sua ironia. O país agora governado por Obama foi durante décadas o anestésico de qualquer ação determinada para combater as alterações climáticas. E serviu de álibi a outros, como a China, para ir pelo mesmo caminho. Talvez agora mesmo o republicano mais tapado (e a maioria não precisa de um capachinho oxigenado sobre os olhos para não enxergar) perceba o que está em causa, quando as águas do Golfo molharem os pés da América.