Andando a catar informações, em velhos alfarrábios de um dos nossos arquivos históricos, num livro com o título “Visitas da Saúde“, encontrei esta nota escrita em 30 de Julho de 1657: “ … neste dia foi o escrivão, por mandado do guarda-mor da saúde à cadeia da relação do Porto notificar o piloto da barra de S. João da Foz do Douro, Domingos Gonçalves Delicado, que estava preso por trazer o navio francês (que metera dentro da barra) para baixo do lugar de Vale de Amores, onde costumam lançar ferro, até serem visitados pelos guardas mores da saúde…”
Expliquemos: naqueles recuados tempos, todo o barco, vindo de fora do país, que entrasse no rio Douro era obrigado a fundear, isto é a parar, diante do tal lugar de Vale de Amores para ser inspecionado pelos guardas mores da saúde. A finalidade era evidente: evitar que entrassem na cidade pessoas ou mercadorias que estivessem doentes ou contaminadas por algum mal contagioso. No caso de isso acontecer as pessoas seriam metidas em quarentena em instalações existentes no tal sítio do Vale de Amores e os géneros será destruídos pelo fogo. Até aqui, nada de especial. A rotina normal de quem velava pela saúde dos portuenses. O que me surpreendeu foi o sítio de Vale de Amores. Onde ficava e porquê aquela curiosa denominação?
Não foi difícil encontra a solução do enigma – que afinal nem sequer o era. Recorri a Camilo, relendo os “Narcótios”. O “torturado de S. Miguel de Seide ”, nesta sua obra, refere-se à existência, do outro lado do rio, em Gaia, da Quinta de Vale de Amores que, em tempos idos, terá pertencido ao famoso Álvaro Gonçalves, “o Magriço”, esse mesmo, o tal a que Luis de Camões se refere na estrofe 68 do Canto VI de “os Lusíadas” e da sua, dele do Magriço, no célebre torneio dos Doze de Inglaterra.
A Quinta de Vale de Amores ficava na margem esquerda do rio Douro, em Gaia, próximo do castelo construído durante o período romano, em terras da antiga povoação de Cale, nome que mais tarde os árabes mudaram para Gaia – cuja lenda já foi objeto de uma das minhas últimas crónicas.
Ora, acontecia que durante as prolongadas ausências do Magriço, os escudeiros deste, que deviam cuidar da propriedade, administrando-a em nome do seu amo, não se portavam lá muito bem com a população local contra a qual cometiam constantes agravos o que deu origem a queixas que chegaram à corte. Em face disso os donos da propriedade, par não se verem envolvidos em querelas e questões judiciais, doaram à Ordem de S. Francisco a sua quinta do vale de Amores com a condição de na propriedade os franciscanos construírem um mosteiro da invocação de Santo António. E assim aconteceu. Mas os frades mudaram o nome ao sítio.
Até ali era Vale de Amores porque, segundo antiga tradição, era para lá que do Porto iam os namorados arrolar na amenidade das sombras discretas que lhes eram oferecidas pelos odoríferos jardins da quinta. Depois da construção do mosteiro passou a denominar-se Vale de Santo António da Piedade porque aos suspiros amorosos sucederam as místicas rezas dos franciscanos. O que resta do antigo convento, nomeadamente o corpo da antiga igreja, ainda hoje é visível do lado do Porto, especialmente do cais de Monchique.