Há uns dias visitei o Hospital Central de Viena. Uma das maiores unidades de saúde europeias: duas mil camas de interamento, dez mil funcionários, alguns dos mais reputados da Europa em áreas sofisticadas como a radiologia. Aliás, o hospital foi o escolhido para receber o primeiro Somaton Drive do mundo. Um aparelho ainda sem preço definido e que estará para a radiologia como o Rolls Royce está para a indústria automóvel.
Os dois mil metros quadrados do Hospital incluem uma loja de próteses, onde se vendem muletas verdes, vermelhas, de todas as cores menos do enfadonho cinzento. Há escadas e passadeiras rolantes, que guiam os utentes até aos vários serviços. Um sistema de riscas coloridas, marcadas no chão, ajuda a que ninguém se perca. Pelos corredores amplos, de chão de linóleo impecavelmente limpo, passam miúdos de bata branca, com ar preocupado – é um hospital universitário muito exigente e a vida de estudante de medicina não é fácil para ninguém. Circulam ainda médicos mais séniores, impecavelmente vestidos e um ou outro mais freak. Como um que vi passar: bata branca, pele queimada da neve (as mãos estavam brancas, por isso é que supus ser neve!), cabeça completamente rapada e um neurónio tatuado, mesmo acima da orelha direita. Neurologista ou neurocirurgião, com certeza. Tudo em movimento, escada rolante acima, escada abaixo.
Na ala dedicada à radiologia, pudemos apreciar o tal Rolls Royce da tomografia. Resultados em menos tempo, mais conforto para o doente. Na antecâmara, duas radiologistas seguem meia dúzia de monitores – um para ver o paciente, outro para espreitar o interior da máquina, outro para definir os cortes necessários para uma análise o mais exata possível do interior do doente. Se a alma pudesse ser apanhada, tenho a certeza de que esta máquina o faria. Nem por um segundo as duas especialistas desviaram os olhos dos ecrãs. Nem quando a sala foi invadida por uma dezena de visitantes. Fazem isto durante sete horas. A unidade funciona 14 horas por dia. “Temos uma lista de espera de três semanas. É mau. Já foi menos”, lamenta o chefe da unidade Marius Mayerhoefer. Perante o meu espanto pelo tão curto tempo de espera, o médico e professor universitário atira: “há doentes urgentes, que precisam de receber tratamento o mais rapidamente possível e sem estes exames não conseguimos começar a tratá-los”. Claro, isso sei eu, pensei, um bocado irritada com a condescendência. Ele é que parecia desconhecer que a urgência é a mesma em todo o lado, mas os tempos de espera não.
Estamos em Viena, uma cidade que há já alguns anos aparece no primeiro lugar do índice de qualidade de vida. Não há criminalidade. Os transportes públicos são tão certos como um relógio suíço. Às seis da tarde, no inverno, é noite cerrada e os melhores restaurantes da cidade são os de comida libanesa ou italiana. Tudo funciona!
Uma semana depois de chegar de Viena, visitei, também como jornalista, o Hospital Central de Maputo. Antes de partir, conversei com alguns residentes em Moçambique e sempre que explicava ao que ia, ouvia: “estás preparda?”
Estou preparada, então não estou! Há 15 anos que faço reportagem em hospitais, já assisti a operações complicadas, passei horas em urgências hospitalares. Além disso, sou uma pessoa informada. Sei que Moçambique é um país com vários problemas, entre eles o acesso à saúde, onde 20% da população está contaminada com o vírus da sida e a esperança de vida não passa dos 52 anos.
O avião aterrou às sete e meia da manhã em Maputo e uma hora depois estava eu a entrar no hospital. Já tinha passado pelos bairros de lata, entre o aeroporto e o centro da cidade, com os miúdos a brincar entre o lixo, na beira da estrada.
O hospital é amplo, espalhado por uma área plana, dividido em pavilhões, rodeados de canteiros bem cuidados. Há árvores, arbustos e flores. Talvez por isso o choque seja maior quando se percebe o estado de degradação dos edifícios. Boa parte deles não teve qualquer tipo de intervenção desde a sua construção na década de 40 do século passado. Há sofás de napa velhos espalhados pelas varandas, onde os doentes esperam pela sua vez. Está muito calor. Trinta graus e ainda não são dez da manhã. Mas como não há ar condicionado, mais vale esperar na varanda, sempre pode correr uma aragem. Na oncologia falta de tudo. Medicamentos, espaço para sentar os doentes, que se apertam na sala de quimioterapia, que é essencialmente paliativa. Os doentes chegam num estado muito avançado da doença, anos depois de sentirem os primeiros sintomas, quando já há muito pouco a fazer. Em todo o país, a nível público, não há qualquer equipamento de radioterapia, um elemento essencial no tratamento dos doentes com cancro. Para todo o hospital, há um aparelho de TAC e outro de ressonância magnética. Mas há engenho. Adaptam-se os esquemas terapêuticos, improvisa-se, oferece-se paracetamol para tratar a dor oncológica. E espera-se. Com uma serenidade e uma paciência desconcertantes. Afinal, eu não estava para tudo!
No último dia, dei um passeio de tuc-tuc pela belíssima Costa do Sol, à beira do Índico, completamente rendida àquele calor, àquelas gentes. Ao volante, o Matias, um bonito rapaz de 29 anos, orgulhoso do seu veículo e dos filhos de oito e seis anos. Falávamos do tempo e das estações do ano. “A primavera começa a 21 de março”, disse-lhe. “Ah, pois é! Vocês lá têm data marcada para tudo”, exclama, com genuína pena de mim e de outros europeus como eu, com a vida assente em calendários e agendas. E é mesmo para ter pena.