A declaração de que Israel está a cometer um genocídio contra os palestinianos da Faixa de Gaza, feita por uma comissão independente das Nações Unidas, é mais uma pedra num enorme edifício de provas, evidências e argumentos que se acumulam contra a desfaçatez de quem continua a negar o genocídio em curso.
A secretária-geral da Amnistia Internacional, Agnès Callamard, disse-o de forma clara. “Não há mais tempo para desculpas: à medida que as provas do genocídio de Israel continuam a acumular-se, a comunidade internacional não pode alegar que não sabia.” E propôs um caminho, que tem de ser seguido pelo mundo em que a decência é essencial. “Este relatório deve obrigar os Estados a tomar medidas imediatas e a cumprir a sua obrigação legal e moral de pôr fim ao genocídio de Israel. A comunidade internacional, especialmente os Estados com influência sobre Israel, deve exercer toda a pressão diplomática, económica e política possível para garantir um cessar-fogo imediato e duradouro e o acesso humanitário sem obstáculos a Gaza. As conclusões deste relatório devem obrigar os Estados a interromper todas as transferências de armas e segurança para Israel, a reavaliar as suas relações comerciais com aquele país, para garantir que não estão a contribuir para o genocídio em Gaza, o apartheid e outros crimes contra a Humanidade ou crimes de guerra, ou a ocupação ilegal do Território Palestiniano Ocupado.”
Na Amnistia Internacional não temos dúvidas de que o que se passa na Faixa de Gaza ocupada é genocídio. Dissemo-lo em dezembro de 2024, com uma investigação minuciosa e aprofundada, entrevistando 212 pessoas, e complementando as entrevistas com a análise de uma vasta quantidade de provas visuais e digitais, incluindo imagens de satélite, imagens de vídeo e fotografias publicadas nas redes sociais ou obtidas diretamente pelos seus investigadores.
A Amnistia Internacional encontrou bases suficientes para concluir que, entre 7 de outubro de 2023 e julho de 2024 (o relatório centrou-se neste período), Israel cometeu atos proibidos pela Convenção sobre o Genocídio, nomeadamente matar, causar lesões corporais ou mentais graves e infligir deliberadamente aos palestinianos em Gaza condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física, total ou em parte. A Amnistia Internacional concluiu também que estes atos foram cometidos com a intenção específica de destruir os palestinianos em Gaza.
Há um genocídio em curso.
Não é, portanto, tempo de
lamentações nem de aprender com o passado, é tempo de ação, e os nossos políticos e líderes mundiais têm apenas
duas opções: agir ou ser
cúmplices do que se passa
Até 7 de outubro de 2024 – um ano depois do ataque do Hamas –, das cerca de 40 000 mortes que o Ministério da Saúde, sediado em Gaza, identificou na totalidade, as crianças, as mulheres e os idosos constituíam pouco menos de 60%. Os restantes 40% eram homens com menos de 60 anos, não havendo nenhuma fonte independente capaz de determinar quantos eram combatentes e quantos eram civis. Os números são aceites pela generalidade da comunidade internacional.
Desde que a Amnistia Internacional concluiu a sua investigação, a ofensiva de Israel em Gaza expandiu-se e está hoje em níveis que nenhum líder político pode ignorar. O cerco ao território ocupado, com um bloqueio sistemático e total por parte do Exército israelita, impedindo a entrada de bens alimentares, medicamentos e outro material médico, o corte no acesso a luz e água potável, a destruição de infraestruturas civis, como escolas, hospitais e centros de saúde, são prova inequívoca de que Israel criou condições em Gaza que conduziriam à morte lenta dos palestinianos.
A fome é uma realidade no quotidiano dos palestinianos de Gaza, com mortes evitáveis – a comida das agências humanitárias e das Nações Unidas está às portas da fronteira fechada, entrando a conta-gotas, quando entra. O controlo deliberado de Israel sobre a ajuda humanitária, expulsando a UNRWA (agência das Nações Unidas para os refugiados palestinianos), dinamitando a presença de organizações humanitárias no terreno e entregando a escassa distribuição de alimentos a uma fundação americana sem qualquer experiência anterior, chefiada por um homem de negócios e líder religioso.
Os 400 pontos de distribuição de ajuda humanitária que funcionavam durante o cessar-fogo temporário em Gaza (nos primeiros meses de 2025) foram substituídos por apenas quatro locais de distribuição controlados pelos militares. Os palestinianos em Gaza enfrentam uma escolha impossível: morrer à fome ou arriscar-se a ser baleados enquanto tentam desesperadamente chegar à comida para alimentar as suas famílias.
A Comissão Internacional Independente de Inquérito da ONU sobre o Território Palestino Ocupado, incluindo Jerusalém Oriental, e Israel, que classificou de genocídio em Gaza, acrescentou um outro critério para a sua conclusão: Israel está a “impor medidas destinadas a impedir nascimentos dentro do grupo”. O texto nota que há um “ataque extensivo e deliberado a crianças palestinianas”, que é prova de que as operações militares não estão a ser conduzidas apenas para derrotar o Hamas, mas para “destruir fisicamente o grupo (palestiniano), eliminando não só as crianças de hoje, mas também a possibilidade de elas terem filhos no futuro”. Provou-se que Israel atacou e destruiu maternidades de forma deliberada. Israel recusou ainda a entrada de fórmulas e leites infantis especiais em Gaza, resultando na “fome de recém-nascidos e bebés”, uma “prova especialmente forte da intenção de destruir a população”.
Até as guerras têm regras
A ação do Hamas e de outros grupos armados no dia 7 de outubro de 2023 não foi um ato de guerra que possa justificar-se de alguma maneira. Foram crimes de guerra e crimes contra a Humanidade. A Amnistia Internacional denunciou esses crimes e continua a apelar, desde o primeiro momento, à libertação incondicional de todos os reféns civis. Também documentou a localização de combatentes do Hamas entre civis e denunciou-a. Muitos palestinianos dirigiram protestos contra a prisão a céu aberto em que vivem, entre a espada do cerco de Israel e a parede da opressão do Hamas, e sofreram a perseguição e a tortura pelos milicianos do movimento que administra Gaza.
Da mesma forma, a afirmação de que a guerra de Israel em Gaza visa apenas desmantelar o Hamas e não destruir fisicamente os palestinianos como grupo nacional e étnico não resiste a um exame minucioso. Basta avaliar os ataques diretos e deliberados a civis e a infraestruturas civis, onde não havia presença do Hamas ou quaisquer outros objetivos militares. É lembrar a utilização de armas explosivas pesadas com um amplo raio de destruição em áreas residenciais densamente povoadas, numa altura em que a sua utilização causaria seguramente o maior número de baixas civis. Ou considerar a destruição repetida de infraestruturas civis mesmo depois de Israel ter obtido o controlo militar sobre elas, como neste momento em que o governo de Telavive assume, sem pudor, querer dividir o território com os Estados Unidos da América para um empreendimento imobiliário. Governantes israelitas, como o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, o Presidente Isaac Herzog e o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant, incitaram o genocídio.
Gostemos ou não, conflitos e guerras sempre fizeram parte da História da Humanidade. Mas até a guerra tem regras. As Convenções de Genebra, criadas no luto do Holocausto e da II Guerra Mundial, existem para travar excessos e proteger as pessoas que não participam no conflito. Existem para que mantenhamos a nossa humanidade. Desde o Holocausto, esta é apenas a terceira vez que um organismo da ONU aponta tacitamente que há um genocídio. Mas ao contrário do que aconteceu no Ruanda (1994) e na Bósnia-Herzegovina (1995), que só foram considerados genocídios posteriormente, desta vez podemos dizer que há um genocídio em curso. Não é, portanto, tempo de lamentações nem de aprender com o passado, é tempo de ação, e os nossos políticos e líderes mundiais têm apenas duas opções: agir ou ser cúmplices do que se passa. É possível fazer muito mais para proteger os palestinianos, parar o genocídio em curso em Gaza e impedir a sua possível propagação ao resto do Território Palestiniano Ocupado. Não queremos ser cúmplices, nem que seja por omissão.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.