Todos sabemos que as generalizações são injustas. Mesmo no futebol, na equipa que jogou mal e desinteressada, há sempre quem se tenha esforçado e dado o seu melhor.
Vem isto a propósito do debate sobre a moção de confiança. As críticas ao que se passou no debate sobre a moção de confiança na Assembleia da República, sem especificar quem fez “triste figura“, quem ensaiou manobras e truques, são um ataque generalista infundado à democracia. Jogos de sombras, falsas vontades de negociar, manobras e malabarismos de bastidores e muito mais coisas que comentadores descortinaram são críticas injustas se atribuídas em geral, a todo o plenário. Serão adequadas se dirigidas aos grupos parlamentares da AD e ao Governo, mas desadequadas se atribuídas genericamente a todos os protagonistas da Assembleia.
Não se trata, aqui, de discutir a qualidade dos argumentos do Governo ou dos partidos – essa é uma questão já largamente debatida –, mas tão só recusar a crítica generalizada a um órgão central da democracia. Sim, já houve sessões e incidentes pouco recomendáveis no Parlamento, em que deputados de várias bancadas travaram discussões acesas, com argumentos descabidos na tentativa de “salvarem a prata da casa”. Discussões tão acaloradas que levaram um ministro a pôr dois dedos na testa simulando chifres, um primeiro-ministro a gritar que “manso é a tua tia, pá”, ou um deputado que mandou outro para tão longe que me abstenho aqui de escrever o destino. Na Biografia de Jorge Sampaio, José Pedro Castanheira recorda peripécias do debate iniciado na manhã de 21 de abril de 1988 e que só terminaria às 9h55 do dia seguinte. A maioria absoluta de Cavaco Silva impôs o prolongamento dos trabalhos e a votação mecânica dos diferentes pontos do regulamento da Assembleia. Todos os partidos da oposição, em protesto, decidiram deixar apenas um ou dois dos seus parlamentares na sala. A permanência dos 126 sociais-democratas garantia o quórum necessário, e iam dizendo sim a todos os pontos, apresentados, sem qualquer debate. O jornalista parlamentar Daniel Reis escreveu na altura que os eleitos pelo PSD “nem sequer” liam os artigos do regimento. O PSD “só votava, votava, votava” Jorge Sampaio haveria de referir-se a este episódio como “Laranja Mecânica”, invocando o violento filme de Stanley Kubrick.
Naqueles tempos, porém, ainda não estava na moda atacar o Parlamento e a memória é curta.
Nada de tão dramático se passou no passado dia 11. O que houve, foi um partido e um governo que tentaram resolver questões de Estado – como evitar a queda do Governo – numa negociação secreta a dois. O debate esteve longe de atingir o calor de outros momentos e até os mais
truculentos se mantiveram, inesperadamente, no domínio do razoável. As manobras e truques, as negociações clandestinas foram recusadas e tudo acabou como era previsível que acontecesse.
Houve conversa de surdos, sim, porque as posições eram conhecidas à partida. Não havia conceitos, ideias ou projetos para debater, mas um problema de transparência e de ética pessoal. As oposições já tinham avisado que não fariam a vontade ao Governo e o Governo insistia em não fazer a vontade às oposições,
Na origem de todo este processo está uma “empresa familiar” destinada a gerir propriedades da família, como Luís Montenegro começou por a apresentar. Empresa que veio a revelar-se ser uma sociedade muito diferente daquela que era suposto apenas administrar património familiar. O que começou por um pífio ataque a uma alegada atividade imobiliária, forçadamente suscitado pela nova lei dos solos, acabou por transformar-se num empreendimento de vulto.
Agora, a oposição quer saber com quem, direta ou indiretamente, negociou o primeiro-ministro, como se justificam os valores cobrados, quem trabalha na consultora e se houve procuradoria ilícita. Vai longa a lista de dúvidas e suspeições. Está gasta a crítica de que Luís Montenegro devia ter-se explicado mais cedo. Ele bem sabe que não há segunda oportunidade para dar uma boa primeira explicação. Não foi por o ignorar que quis silenciar o caso. Agora, é tudo ou nada.
Só a estratégia do Governo e da AD poderá ter dado origem às críticas que se ouviram. Porém, raramente os ataques de muitos comentadores ao Parlamento tiveram destinatário.
Disto mesmo se ocupa Pacheco Pereira no seu artigo semanal no “Público”, ao escrever que “a herança maldita [do salazarismo] está cá e basta haver um momento de maior confronto (…) e logo uma onda de indignação se levanta”. Continua: “Bate-se no peito com a vergonha da negociação, a barganha, que aconteceu no plenário(…) E depois? Qual é o problema de, no meio de uma crise política, haver este tipo de confrontos, truques e coreografias?” Responsabilizando o que se vai dizendo na Comunicação Social, Pacheco Pereira diz haver “uma incompreensão profunda do que é uma democracia na sua natural imperfeição. É também por ser imperfeita que é democracia”
Quando se vive uma época em que as democracias estão ameaçadas por extremismos de direita, apoucar os órgãos do regime é dar armas a quem não gosta de debates, de diálogo e prefere um líder forte ao confronto de opiniões. Os parlamentos são, inevitavelmente, locais de discórdia. Ainda bem que os há e que as há.
A democracia e os seus órgãos precisam de ser prestigiados e não de críticas indefinidas. Não “é tudo farelo do mesmo saco”, como costumava dizer Jerónimo de Sousa.
O resultado está à vista nas redes. Circulam boletins de voto em que os candidatos às próximas legislativas são os protagonistas dos Marretas, em que se diz que o governo foi derrubado por quem, no passado, não se deixou sujeitar a comissões, e que vamos à escola mais vezes, para votar, do que quando tínhamos às aulas. Há dias, na RTP, um prestigiado cientista, agora convertido ao mundo rural e criador de burros, dizia querer aumentar a burricada para … fazer um parlamento. Onde já chegámos!
Menosprezando sistematicamente a classe politica não se conseguem melhores líderes. Para recorrer aos aforismos do ex-líder do PCP, corremos o risco de “saltar da frigideira para as chamas”.
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