O diagnóstico de um cancro envolve várias técnicas e tecnologias utilizadas por pessoas treinadas para interpretar os resultados, atribuir aos mesmos um determinado significado, e concluir e decidir, sobre o diagnóstico positivo ou negativo.
O processo envolvido na realização de uma experiência científica, nos laboratórios, é semelhante: utilizamos várias técnicas e tecnologias para obter resultados que interpretamos e aos quais atribuímos um determinado significado, que valida ou nega a hipótese que nos propusemos a testar. A tendência, no que às experiências laboratoriais diz respeito, tem sido aumentar a complexidade das variáveis e dos resultados obtidos, para que permitam retirar mais conclusões e mais sólidas. Explico com um exemplo: na análise da presença de células imunitárias no cancro da mama podemos utilizar anticorpos que permitem identificar – reagindo contra proteínas específicas presentes na superfície das células de interesse – diferentes tipos de células. As mais recentes tecnologias, desde a microscopia e aquisição de imagens, até à forma de visualização dos anticorpos que podemos utilizar, tem contribuído para que numa biópsia (um pequeno fragmento de um cancro de mama habitualmente medindo cerca de 10 mm2) seja possível visualizar até dezenas de tipos celulares. Ou seja, numa amostra de cancro que observamos ao microscópio, utilizando as mais recentes tecnologias, podemos identificar, quantificar e analisar dezenas de diferentes células imunes: qual a frequência de determinado tipo de linfócito? Qual a localização daquele tipo de macrófago? Estão próximos de vasos sanguíneos (fontes de oxigénio e nutrientes) ou nas zonas mais “necróticas” (menos oxigenadas) do tumor? Estas são apenas algumas entre tantas outras questões que esta quantidade de informação nos permite colocar.
Na investigação científica (biomédica e não só), gerir, analisar e interpretar grandes quantidades de dados só é possível através da utilização de ferramentas de “inteligência artificial”
Aqui surgem também alguns desafios: como conseguir avaliar simultaneamente a presença, frequência e localização de dezenas de células, de forma razoavelmente eficiente (e rápida)? A utilização de ferramentas computacionais, de “inteligência artificial”, é – neste exemplo concreto – essencial para nos auxiliar a decifrar e a compreender a heterogeneidade e complexidade que encontramos no cancro da mama. Criamos algoritmos, instruções codificadas de forma precisa e interpretadas por computadores, capazes de responder de forma automática e reprodutível às questões que colocamos, analisando os dados das células e identificando padrões. Mais, permitem fazer essas quantificações quase simultaneamente em várias biópsias, assegurando que as análises são feitas de forma idêntica (ou pelo menos comparável), o que é essencial para testarmos as nossas hipóteses e responder às nossas perguntas. Tudo o que acabo de descrever pode ser sumarizado da seguinte forma: na investigação científica (biomédica e não só), gerir, analisar e interpretar grandes quantidades de dados só é possível através da utilização de ferramentas de “inteligência artificial”.
A disponibilidade e presença de ferramentas de “inteligência artificial” e a sua utilização em inúmeras atividades profissionais e lúdicas, têm preocupado e cativado cada vez mais pessoas nos últimos anos, meses e dias.
Voltando à questão dos diagnósticos de cancro, nomeadamente da mama, avanços recentes permitiram concluir sobre a utilidade de tais ferramentas e a sua importância e relevância. Alexander Katalinic e sua equipa reportaram, num artigo publicado recentemente na prestigiada revista científica Nature Medicine, a análise de dados obtidos de mamografias realizadas entre julho de 2021 e fevereiro de 2023 em 461 818 mulheres na Alemanha, parte do rastreio nacional focado em mulheres sem sintomas com idades entre 50-69 anos. As imagens de mamografia de todas as mulheres foram vistas e analisadas por dois radiologistas, sendo que, para 260 739 mulheres, pelo menos um(a) dos(as) radiologistas utilizou uma ferramenta de “inteligência artificial” no apoio ao seu trabalho. A ferramenta, que interpreta imagens das mamografias, foi capaz de identificar as mamografias como “normais” e criar alertas sempre que o seu diagnóstico não coincide com o dos(as) radiologistas. Esses alertas identificam casos que são analisados novamente pelos(as) radiologistas. 2 881 das mulheres incluídas neste estudo foram diagnosticadas como tendo cancro da mama.
Quando comparados com os diagnósticos realizados da forma convencional, a taxa de deteção no grupo que incluía a ferramenta de “inteligência artificial” foi 17.6% superior, sem aumentar o número de falsos positivos (ou seja erros no diagnóstico). Estes números traduziram-se na identificação de mais um caso de cancro da mama identificado, por cada 1000 mulheres que fizeram o rastreio, casos estes que não teriam sido identificados sem a utilização da ferramenta computacional.
Enquanto parece evidente (outros estudos foram já realizados por vários investigadores e clínicos, em vários países) que a utilização de ferramentas de “inteligência artificial” para o diagnóstico de doenças como certos cancros poderá ser uma realidade a curto prazo, há também que considerar o risco de estarmos a identificar cancros pequenos e restritos, classificados como “localizados”, que poderão não evoluir de forma potencialmente perigosa para as pacientes.
No entanto, os receios aplicados a quaisquer ferramentas computacionais, de “inteligência artificial”, dizem respeito maioritariamente à eventual substituição dos humanos na realização de determinadas tarefas. No caso da investigação laboratorial, penso que é assumido que ferramentas deste tipo ajudam e são essenciais para o rápido avanço e as complexidades subjacentes a áreas de investigação multifatoriais, como são as doenças como o cancro. Gerir a multitude e a complexidade de dados genómicos, metabolómicos, bioquímicos, de imagem, entre tantas outras variáveis, sem auxílio de ferramentas de “inteligência artificial”? Certamente que não.
No que aos diagnósticos médicos diz respeito, creio que estamos ainda a observar os primeiros, mas decisivos, passos para um futuro próximo em que a gestão da imensidão de dados clínicos e biológicos será feita através da utilização de ferramentas de “inteligência artificial” no dia-a-dia da prática clínica.
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