Na semana passada, logo após o início do ano letivo, chegou o primeiro pré-aviso de greve, na quinta-feira: no dia seguinte, o pessoal não docente iria parar, pelo que as escolas poderiam fechar. Funcionários 1 – 0 Governo. Esta quinta-feira, chega nova circular, datada de dia 23, segunda-feira: o pessoal não docente vai parar no dia 27 (amanhã); no dia 4 de outubro (sexta-feira que vem) e no dia 9 de outubro.
Que a “coincidência” de que três dos quatro dias de paralisação calhem à sexta-feira não precisamos de falar. Mas precisamos de falar de outras coisas:
- Nos últimos anos, os pais dos alunos – e a sociedade no geral – estiveram sempre do lado dos professores e do pessoal não docente. As reivindicações são justas, as condições em que trabalham são muitas vezes péssimas e estas são as pessoas que tomam conta, que fazem crescer, as nossas futuras gerações: merecem todo o respeito e dignidade.
- No ano passado, a juntar-se à falta de professores – que em muitas escolas só ficou resolvida muitos meses depois do início do ano letivo – as famílias viram-se a braços com dezenas de dias de greves, ora dos professores ora do pessoal não docente (que acaba por fechar as escolas). Durante todo o ano, ambas as classes profissionais tiveram o apoio público da grande maioria da população.
- Só que assim não é possível continuar. Façamos um exercício simples: se, por absurdo, este ritmo de greves continuar, à proporção de uma por semana, – talvez os alunos estejam a aderir já à semana de quatro dias, o que acho ótimo, mas poderia ser feito de outra forma, que todos nós nos organizávamos para fazer acontecer – falamos de mais de 30 dias em todo o ano letivo. TRINTA DIAS. Um mês inteiro.
- Ora, num País onde quase oito em cada dez estudantes que frequentam o ensino superior (79%) são filhos de pais que também têm estudos superiores – contra 21% de alunos cujos pais deixaram de estudar mais cedo – a escola continua a ser a única via de progressão social. E está a deixar para trás quem já vem de uma situação de desvantagem. “Nós não estamos a conseguir reduzir o gap entre os alunos de contextos sociofamiliares mais favorecidos e os menos desfavorecidos, o que significa que temos falhas na garantia de igualdade de oportunidade”, referia o Ministro da Educação, Fernando Alexandre, há umas semanas. Falava sobre os dados constantes no relatório “Education at a Glance 2024”, onde Portugal aparece como o país da OCDE com mais alunos cujos pais não concluíram o ensino secundário.
- No mesmo sentido, salientou na altura o Ministro, “em Lisboa, 29% dos alunos não chegam, não entram, nunca apareceram no ensino superior e cerca de 33% dos jovens de Setúbal nunca estiveram inscritos em nenhum curso de ensino superior, nem num TesP [curso técnico superior profissional]”.
- Vamos a mais um exercício simples. Para um aluno pertencente a uma família de classe média, um dia de greve pode significar uma de duas coisas: ou fica em casa porque um dos pais até pode estar em teletrabalho, ou vai para um Centro de Estudos ou ATL privado que já frequente – o que é mais comum nas grandes cidades, onde a oferta existe… Nesse dia até poderá fazer fichas, aprender sobre um assunto novo, ler um livro e, garantidamente, terá acesso a boas refeições.
- Para um aluno que venha de uma família desfavorecida, um dia de greve pode, porém, significar que um dos pais tenha de faltar ao trabalho – e, muito possivelmente, perder esse dia de salário. Isto porque os CAF (Componente de Apoio à Família) funcionam nas escolas. Que fecham porque não há pessoal não docente…
- Para um aluno que venha de uma família desfavorecida, um dia de greve pode ainda significar um mais difícil acesso a uma refeição decente. Dados do PISA, divulgados no final do ano passado, mostravam que Portugal é o país da OCDE onde menos alunos ficam sem comer por falta de dinheiro. “Por exemplo, a Ação Social Escolar tem uma componente importante relativamente à alimentação e refeições em espaço escolar. Esta vai desde a gratuitidade (para crianças no primeiro escalão) até ao pagamento total, mas, ainda assim, um valor apoiado que ronda um euro e meio no seu custo final para todas as crianças e jovens”, explicava na altura Tiago Caliça, analista da OCDE, ao Público. Por outras palavras: muitas crianças não passam fome em Portugal porque comem na escola. Se esta fecha, é menos um dia de refeições a que têm acesso. E, como também é amplamente conhecido, a nutrição tem um impacto muito significativo na aprendizagem.
Todos nós, pais, estamos à partida solidários com as causas de quem cuida dos nossos filhos. São causas de todos e é assim que tem de ser, porque, mais uma vez, as novas gerações são o futuro do País. Mas há uma altura em que o remédio pode matar o paciente. Repito: o ano letivo começou há nove dias. O início da escola é algo muito relevante para os alunos e as famílias: é o regresso das rotinas, é o crescimento, é o aumento das responsabilidades, é o reencontro dos amigos, é a certeza de que crianças e jovens estão num espaço seguro, com comida e conhecimento à disposição. É, para muitas famílias mais pobres, a garantia de que se pode trabalhar todos os dias, aumentando os rendimentos, enquanto os filhos estão em segurança.
Quatro greves, em quatro semanas, tendo sido a primeira realizada quatro dias apenas após o início do ano letivo – são muitos quatros numa mesma frase, mas a culpa não é minha… – parece excessivo. E parece, acima de tudo, pouco sensato. Sobretudo porque penaliza quem já é mais penalizado à partida, e quem tem menos responsabilidade nisto tudo: os alunos.
Não sei que conversas já terá havido com o Ministério de Fernando Alexandre. Mas não me lembro de nenhum ministro da Educação que tenha levado com tantas greves seguidas com apenas seis meses de mandato – pode estar a falhar-me a memória, naturalmente.
A escola pública é um desígnio nacional – já o escrevi muitas vezes aqui. Todos nós devemos lutar por ela, tal como lutamos por uma Saúde e uma Justiça que sirva a todos. Mas, a continuarmos assim, a escola pública continuará a servir apenas os que podem pagar uma alternativa para os dias em que não há aulas. E, nesse caso, ninguém ganha. Aliás, é pior do que isso: perdemos todos. Sobretudo enquanto País.
(Leia abaixo o pré-aviso de greve que foi divulgado esta semana)