A notícia começou a circular ontem na imprensa da especialidade: as gravações da nova novela da TVI, a decorrerem em Angola, contam com a participação do ator Nuno Lopes. Sim, o mesmo ator que no ano passado foi acusado de drogar e violar uma guionista durante o Festival de Cinema de Tribecca. O caso remonta a 2006, o ator garante ser inocente, a possibilidade de um acordo (procedimento bastante comum nos EUA) foi negada e o processo encontra-se em curso no Tribunal do Distrito Oriental de Nova Iorque. É a palavra de um contra o outro, como na larguíssima maioria dos casos de violência sexual. Quem diz a verdade? Não podemos saber, o julgamento ainda não foi concluído.
Contudo, trata-se de uma a acusação demasiado grave para tratarmos isto como se nada fosse e sujeitar, não estando a inocência deste homem provada, outras mulheres a serem potenciais vítimas do mesmo crime. Um crime que bem sabemos como ainda é normalizado e menosprezado na nossa sociedade, que está mais disposta a defender a honra e as vidas dos potenciais agressores, do que a acreditar e a dar a mãos ãs vítimas. Esta contratação, a ser verdade, é exemplo claro disso.
O #MeToo tarda a chegar a Portugal e situações como esta ajudam-nos a perceber porquê: o impacto e a gravidade da violência sexual continuam a ser totalmente desvalorizados. Existe um compadrio que alimenta esta equação de poder, e este reforço do sentimento de impunidade pela via da premiação e exaltação pública de homens acusados de violação faz parte da equação. Da televisão ao futebol, temos tido vários exemplos disto por cá.
A ser real tal contratação – há fotos do ator nas gravações em Angola, portanto, a sua presença é um facto – surgem-me várias questões: alguém, desde a estação de televisão à produtora envolvida, perguntou às mulheres que vão trabalhar diretamente com um homem acusado de violação como é que se sentem com isso? E se sim, estas tiveram espaço real para poderem dizer que não se sentem confortáveis ou que têm medo? Se o fizessem, quem seria penalizado: ele ou elas? Alguém pensou que poderão estar a expor estas mulheres a uma situação de risco? Quem vale mais nesta equação?
A par dos desconfortos e perigos envolvidos, alguém pensou também na mensagem implícita de glamorização da suspeita de violência sexual que se irá passar em horário nobre, ao trazer em jeito de tv star, alguém que – não podemos saber ainda – poderá mesmo ter violado uma mulher? Com tantos atores talentosos em Portugal, precisamos de uma contratação destas a meio de um processo que está em tribunal, com tudo em aberto? Se tinham assim tanta vontade de trabalhar com este ator, não podiam esperar pela resolução do caso e fazer a respetiva contratação depois? O que ganha a TVI com isto?
No fundo, trazer para a ribalta, como se nada fosse, alguém com um processo de violação sexual em curso é tomar um partido. Entre a potencial vítima e o potencial agressor, a TVI e a produtora responsável pela novela escolheram o agressor. Quer queiramos, quer não, a mensagem que passam subliminarmente a todas as mulheres que trabalham naquela equipa é esta: se algum dia forem vítimas, nós estaremos do lado do agressor.
O sentimento de impunidade de quem viola vive disto. O desrespeito por todas as vítimas de agressões sexuais também. Não menosprezemos quão grave tudo isto é.
As vidas não podem ficar em suspenso e a presunção da inocência é essencial. Faça-se justiça onde deve ser feita, não há outro caminho. Mas isto tem de ser válido para ambos os lados. Contrataríamos para CFO da nossa empresa alguém com um processo grave de corrupção em curso em tribunal? Correríamos o risco ou esperaríamos pela resolução final? Quando falamos de agressões sexuais, o raciocínio é o mesmo. Ou seria, caso não estivesse tão enraizada desconfiança histórica que recai sobre as vítimas de violação, consideradas levianas e potenciais aproveitadoras, como ponto de partida.
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