Em janeiro deste ano, o Palácio de Kensington emitiu um comunicado revelando que a Princesa de Gales tinha sido submetida a uma cirurgia abdominal que já estava prevista, e que estaria ausente de compromissos públicos, previsivelmente, até à Páscoa – portanto, até ao final deste mês. O comunicado admitia que esta era uma recomendação médica, agradecia a preocupação das pessoas e pedia-lhes que que compreendessem a importância de se garantir que os seus filhos, todos eles pequenos, tivessem uma vida o mais normal possível apesar destas informações.
Durante três ou quatro semanas, não houve qualquer problema. Mas, de repente, uma onda de dúvidas começou a tomar forma e a ganhar tamanho entre – obviamente – os vários fóruns da Internet. William traiu a mulher. Kate traiu o marido. Será que ela saiu do Reino Unido? Kate fez um procedimento estético e quer regressar quando estiver “normal”. A Princesa de Gales está a enfrentar problemas de saúde mental. Houve até quem insinuasse que Kate teria morrido e que a Casa Real estava à procura de um sósia para a substituir. Durante dias, as redes sociais tornaram virais conteúdos aos quais os media de referência não deviam ter dado atenção. Mas demos. De repente, já não são apenas os tabloides que exploram a vida da realeza, mas todos os meios sentem que têm de fazer, pelo menos, uma referência a estas situações, não vão perder o comboio do clickbaite.
Problema: esquecemos demasiadas vezes de que, por detrás da necessidade de audiências nos sites – todos nós a temos, e cada vez mais porque como sabe, caro leitor, o negócio dos media não vai bem e não se recomenda – estão pessoas reais, com vidas e problemas reais. E não estou a usar o termo “real” para fazer menção à Princesa Kate, mas sim à realidade dos factos. À verdade.
Para tentar mitigar as teorias absolutamente rocambolescas que foram surgindo, o Palácio de Kensignton – que claramente precisa de umas aulas de gestão de crise – decidiu publicar uma fotografia da Princesa e dos seus três filhos no Dia da Mãe, que no Reino Unido se celebrou a 10 de março. Porém, a imagem tinha sido alvo de alguma edição grosseira, identificada rapidamente pela Associated Press e outras agências de informação. A imagem foi mantida na conta oficial de Instagram dos Príncipes de Gales, com a indicação de que fora editada. No dia 11 de março, Kate emitia um comunicado a pedir desculpa pela imagem editada e tomando para si as culpas. Tornou-se claro que alguma coisa estava muito errada e que efetivamente havia algo que Kate e William não queriam partilhar com o mundo. E, ao invés de os deixarmos sossegados, o que fizemos nós, comuns mortais? Continuámos com as teorias da conspiração, fazendo eco de imagens captadas à socapa quando o casal foi visto num parque de estacionamento depois de umas compras corriqueiras. E claro, nesta altura houve também quem dissesse que não era Kate quem andava a passear, mas sim um sósia contratado para acalmar os rumores.
E nós continuámos sem entender que por detrás de todos estes absurdos que encheram a internet e páginas de jornais e até segmentos de noticiários televisivos estavam pessoas de carne e osso. Com filhos pequenos que têm uma exposição pública inimaginável e que não precisam de ver a vida dos pais enxovalhada em todo o mundo só para que nós acalmemos as nossas dúvidas sobre o que se passa na casa dos outros.
Este sábado, claramente por pressão mediática, Kate Middleton anunciou, num vídeo gravado no seu jardim, que está com um cancro e que começou os tratamentos de quimioterapia. A imagem fez capa de praticamente todos os jornais no Reino Unido e foi usada por outros tantos em redor do mundo: uma mulher, de 42 anos, mãe de três filhos, com um ar absolutamente desolado a ter de contar publicamente algo que, possivelmente, gostaria de guardar para si e para o seus – se assim não fosse, certamente já o teria anunciado nas redes sociais ou através do seu gabinete de comunicação.
E, de repente, um clamor de desalento e preocupação perpassou a mesma Internet e a imprensa que já sabiam que Kate e William estavam era a atravessar uma crise no casamento: “Kate, não estás sozinha”, escrevia o The Sun. “Kate: tenho cancro”, era a manchete do The Star. “Princesa revela que tem cancro e diz: vou ficar bem”, lia-se no The Times. Este domingo, os jornais voltaram a fazer capa com a Princesa de Gales. “Uma nação emocionada com a coragem de Kate”, escreve o The Sunday Express. “Kate escreveu todas as palavras para ‘acalmar’ a nação’”, diz o Sunday Times. “Kate teve um almoço emocionado com o Rei”, revela, naturalmente, o The Sun.
A mesma imprensa que deu força à pressão para que a família real inglesa dissesse algo – e note-se que os britânicos se dizem cada vez mais afastados da monarquia – parece hoje não ter tido qualquer responsabilidade no aparecimento forçado de Kate Middleton nos ecrãs de todo o mundo (devo ter recebido mais de dez notificações de meios de comunicação de vários países exatamente com o mesmo título: “Última Hora! Kate Middleton tem cancro!” assim que o vídeo foi tornado público).
O que significa que esta é uma boa altura para pensarmos sobre isto: se a Princesa de Gales, que tem uma equipa de comunicação à sua disposição, acesso direto a jornalistas ou contas oficiais de redes sociais que pode usar, não quis falar sobre o seu cancro, por que teve de o fazer? Para suprir a nossa curiosidade, cada vez mais aguçada pela necessidade que temos de saber tudo sobre todas as pessoas? – Obrigada, redes sociais! Para acabar com os disparates que se escreviam sobre ela e o marido numa altura em que os seus filhos não só já sabem ler como ouvem os comentários dos colegas e dos pais dos colegas na escola? Para ganhar alguma paz de espírito enquanto se concentra na única coisa que importa, que é o tratamento que tem de fazer para ficar bem? Possivelmente todas as respostas acima estão corretas.
O que me leva à pergunta seguinte: quando é que nós todos, enquanto sociedade, perdemos a mais básica noção de respeito e consideração pela privacidade das pessoas?
É que o argumento de que Kate ocupa um cargo público deixa de ser válido a partir do momento em que o Palácio de Kensington foi fazendo os comunicados necessários, assegurando que a Princesa estava a recuperar, e contava regressar à vida pública perto da Páscoa. Na verdade, Kate Middleton até podia ter aproveitado estes meses para estar apenas a comer pipocas em frente à televisão, ou a costurar os fatos de Carnaval dos filhos. O que quer que fosse importante para ela. O que nós não podíamos ter feito, enquanto sociedade – e também enquanto órgãos de comunicação social que se regem por critérios éticos e deontológicos – era obrigar uma mulher que enfrenta um cancro, com três filhos pequenos, a ter de vir anunciá-lo num vídeo que – obviamente – também já disseram que foi manipulado. Lembram-se do que todos dissemos dos paparazzi que perseguiram a Princesa Diana até ao acidente que a vitimou mortalmente, em 1997?
Não fomos melhores do que eles. E devíamos ter sido.
*Artigo atualizado no dia 25 de março para corrigir a informação sobre a fotografia que ainda consta na conta oficial do Instagram dos Príncipes de Gales