“Basta uma crise política, económica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados.” A frase de Simone de Beauvoir pairou sobre a câmara do Congresso de Versalhes, onde na segunda-feira, 4 de março, a Assembleia Nacional francesa e o Senado se juntaram para inscrever na Constituição esta declaração: “A lei determina as condições em que se exerce a liberdade garantida à mulher de recorrer a uma interrupção voluntária da gravidez.”
França tornou-se o primeiro país a garantir o direito ao aborto na sua carta fundamental. A votação foi esmagadora (780 votos a favor e 72 contra) e a palavra que mais se ouviu foi “liberdade”.
Numa sessão em tudo histórica, o primeiro-ministro, Gabriel Attal (que, com 34 anos, contraria o envelhecimento generalizado dos líderes mundiais), fez-se acompanhar de Jean Veil, filho de Simone Veil, a ministra da Saúde que, em 1974, se bateu pela despenalização do aborto em França e cuja lei, aliás, exibe o seu nome.
Disse Attal: “Hoje, França envia uma mensagem histórica ao mundo inteiro: o corpo das mulheres pertence-lhes e ninguém tem direito de dispor dele em vez delas.”
Uma mensagem que vai para lá do direito ao aborto e nos lembra as mulheres mortas e violentadas por quem acha que aquele corpo é sua propriedade, as vítimas da mutilação genital feminina, as escravizadas e objetificadas para fins sexuais.
A História está a abarrotar de exemplos de recuos e a frase de Simone de Beauvoir vai pairar sempre nos tempos de prosperidade e de alegria pela conquista. Porque as distopias estão entre nós.
E vamos de uma ponta à outra do planeta, das imagens das mulheres iranianas nos anos 70, antes da revolução, à recente conquista talibã do Afeganistão, que voltou a fechá-las em casa, impedindo as meninas de ir à escola.
Ficamos aqui pela Europa, onde na Polónia se luta nas ruas pelo direito ao aborto não apenas em casos de incesto, violação ou risco de vida da mulher (é proibido mesmo em caso de grave deficiência do feto).
Ou então atravessamos o Atlântico para ver como se pode perder tudo o que se conquistou, como está a suceder nos Estados Unidos da América, depois de o Supremo Tribunal reverter, em 2022, a decisão do caso Roe vs Wade, que legalizaria o aborto em 1973 a nível federal. Hoje, quase metade dos 50 estados já agiu para limitar o direito à interrupção voluntária da gravidez. Há estados em que a proibição é total, não admitindo sequer as exceções de incesto ou violação (como no Texas, onde recentemente uma mulher foi impedida pelo tribunal de fazer um aborto, embora corresse risco de vida por carregar um feto inviável).
Algumas deputadas francesas entraram no Palácio de Versalhes vestidas de branco, a cor das sufragistas e uma forma de recordar as congressistas americanas – a cor que Kamala Harris usou na noite da eleição de Joe Biden. Outras foram de verde, como homenagem às mulheres argentinas que, depois de conquistarem, em 2020, a descriminalização do aborto, se veem agora em risco sob o governo do populista Javier Milei. E outras usaram o lilás, claro, a cor do Mouvement de Libération des Femmes, um dos pilares do feminismo francês, nascido do Maio de 68.
E a liberdade, de que cor é?
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