Aos olhos do Ocidente, o conflito israelo-palestiniano parecia estar adormecido há vários anos, incapaz até de conseguir a atenção mediática que teve noutros tempos. O que não significava que fosse visto da mesma forma noutras partes do mundo, em especial nos países árabes, onde nunca deixou de ser um assunto premente e, acima de tudo, como algo que precisava de, um dia, ser resolvido. É esse, aliás, o problema dos chamados “conflitos congelados”: um dia, quando vão ao lume, explodem com uma violência que, rapidamente, foge ao controlo de todos os intervenientes.
Por isso, face ao que está a ocorrer diante dos nossos olhos, não podemos fixar a nossa atenção apenas no rastilho mais próximo deste conflito: os ataques terroristas ignóbeis do Hamas, que merecem ser liminarmente recusados e condenados por alguém com um mínimo de raciocínio humanista e de conhecimento histórico. Como também devemos ter o cuidado de não reduzir tudo a um duelo entre os fundamentalismos radicais que, ao longo dos últimos anos, acabaram por ocupar o espaço público do debate e transformar uma questão política contemporânea e relevante numa querela religiosa, cuja origem se perde na bruma dos tempos.
A realidade, no entanto, é que a questão palestiniana representa, há muito tempo, para uma parte importante do globo, a “mãe de todas as batalhas”, como, acertadamente designou, numa entrevista recente, o antigo primeiro-ministro francês Dominique de Villepin, o diplomata que, durante a presidência de Jacques Chirac, no início deste século, foi uma das vozes europeias mais ativas na oposição à invasão norte-americana do Iraque. E, por essa razão, há uma parte considerável do mundo que não consegue olhar para o que está agora a acontecer abstraindo-se do contexto que alimenta o conflito há décadas.
A prova de que esta guerra não nasceu no “vácuo” ‒ como lembrou António Guterres ‒ está na forma como, desde há semanas, assistimos ao crescimento de uma fratura profunda a dividir opiniões públicas e o mundo. E de uma forma que, pelo avolumar dos acontecimentos, parece impossível de estancar ou de sarar. A polarização passou a ser o novo normal. E tornou-se quase obrigatório que cada um tenha de escolher um lado, de forma incondicional, como se estivéssemos num filme de “bons” e de “maus”, entregues apenas à emoção e alienados de qualquer racionalidade.
Estamos a entrar num momento perigoso, em que o diálogo parece ser, cada vez mais, impossível. Um momento em que muitos tentam fazer aumentar o medo pelo “outro”, levando já ao recrudescimento das piores paranoias antissemitas e antimuçulmanas.
Mais grave ainda é a forma como este conflito está a fazer aumentar a clivagem entre o Ocidente e o chamado Sul Global. Tudo por culpa da dualidade de critérios que, aos olhos da maioria da população mundial, os países ocidentais têm demonstrado em relação a Israel. Os argumentos são indesmentíveis: o mesmo mundo ocidental que, corretamente, avança com sanções a Moscovo, pela violação de princípios consagrados na Carta das Nações Unidas, tem sido incapaz de tomar uma atitude semelhante em relação a Telavive, nos seus repetidos atropelos às resoluções aprovadas no maior fórum mundial. A fratura existe, está a crescer e não pode ser ignorada. E a forma de a resolver nunca será pelas armas, mas sim pela força – da diplomacia. Assim, exista coragem e líderes para isso.
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