Não é preciso ser religioso nem estar muito por dentro destes assuntos para o ver. Saltam pelos olhos adentro as diferenças de estilo entre aquilo que têm sido as palavras e os atos de Francisco e o que são as palavras e os atos oficiais da Igreja Católica portuguesa. Jorge Bergoglio quer mudar a instituição e, apesar de ter sido eleito há apenas dez anos, já está a traçar o seu lugar na História, na linha do que fez João XXIII, o Papa do Concílio Vaticano II. A direita diz que é por isso que a esquerda – mesmo a esquerda laica e republicana – gosta deste Papa. Adiante no debate empobrecedor das trincheiras: a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), em Lisboa, ficará certamente como um marco importante nessa estratégia de Francisco.
Como pode a Igreja continuar-se a mover-se nas trevas quando é a luz que os jovens procuram? Basta andar pelas ruas de Lisboa para perceber que, quando se fala de JMJ Lisboa 2023, não é só de fé, de missas e de orações que estamos a falar. É de encontros, de partilha, de alegria, de festa
Nada disto é novidade, mas tudo isto tem sido muito evidente durante a JMJ Lisboa 2023. Dou dois exemplos. Logo no primeiro dia da sua estada em Lisboa, arrumados os encontros com as mais altas autoridades e quando todos julgavam que iria recolher-se e descansar, Francisco fez questão de pôr o assunto dos abusos sexuais na agenda, ao reunir-se com 13 vítimas, sem máscaras nem solenidades. “Muito duro, muito duro”, soubemos nós depois que comentou, comovido, após ter escutado as vítimas. Estas, de acordo com o relato da psicóloga Rute Agulhas, que esteve presente, sentiram-se renascidas. E isso, por razões que a razão desconhece, de alguma maneira, também nos recompõe emocionalmente a todos nós. Como pode o silêncio ter durado tantas décadas, na Igreja e fora dela? Dou ainda outro exemplo: quando, na quinta-feira, 3, no Parque Eduardo VII, o Papa exortou os jovens a gritar “a Igreja é de todos, todos, todos” cada vez mais alto, é de uma Igreja verdadeiramente inclusiva que falava. Não é preciso ser um extraordinário entendedor para perceber que Francisco também queria ser ouvido dentro de casa.
Dados os problemas de saúde do Papa, não é crível que este pontificado se prolongue por mais dez anos. Dure o tempo que durar, porém, há um processo revolucionário em curso. E isso é entendido pelos católicos menos conservadores (é sempre difícil pôr estes rótulos, mas enfim, estando de boa fé, julgo que se entende) como uma lufada de ar fresco numa instituição que, em tantos momentos, continua a ser absolutamente inflexível e, sim, profundamente aborrecida. Como pode a Igreja continuar a mover-se nas trevas quando é a luz que os jovens procuram? Basta andar pelas ruas de Lisboa para perceber que, quando se fala de JMJ Lisboa 2023, não é só de fé, de missas e de orações que estamos a falar. É de encontros, de partilha, de alegria, de festa.
Diga-se de passagem que não é só na Igreja que esta cultura bafienta persiste: o País do “respeitinho é bonito” também esteve presente na atitude da Câmara Municipal de Oeiras, onde alguém, muito diligentemente, mandou retirar o cartaz, afixado na rotunda de Algés, que recordava as 4815 crianças vítimas de abusos sexuais. “Então, mas vamos receber o Papa com um cartaz daqueles?” Todos sabemos como, na cabeça de muito boa gente, ainda ressoam frases como esta. As verdadeiras revoluções fazem-se por dentro e, rezam os manuais de ciência política, levam muitos anos. A inexorável marcha do tempo.