O estado laico é pacífico nas democracias mas apresenta vários obstáculos de percurso. Desde logo porque a classe política nesta velha Europa tem muita dificuldade em lidar com o fenómeno religioso, por desconhecimento, pelo que prefere ignorá-lo tanto quanto possível, dando aso a zonas cinzentas, tanto na legislação como na governação. Como não se domina minimamente a matéria finge-se que os problemas não existem.
Pela mesma razão a Comunicação Social só se lembra do mundo religioso em caso de crime, escândalo ou bizarria, passando ao lado do elevado papel social, humanitário, cultural, educacional e de promoção da saúde pública que muitas comunidades religiosas desenvolvem. Costumo dizer que os dedos de uma só mão chegam e sobejam para contar os jornalistas portugueses que conhecem de facto alguma coisa do campo religioso. A esses deixo aqui a minha vénia.
Outro dos problemas graves de hoje é a promiscuidade de lideranças religiosas com a política. Muitos desses líderes organizam os chamados “currais eleitorais”, fazendo dos fiéis massa de manobra contra a promessa de alguma benesse. Noutros casos, concorrem eles próprios a cargos electivos e mergulham de cabeça nas disputas das campanhas eleitorais, dividindo assim o seu rebanho de fiéis e manipulando-o a partir do púlpito, umas vezes com base no constrangimento religioso e outras vezes recorrendo mesmo à ameaça espiritual.
Mais. Concorrem não em nome das populações da sua terra, região ou país, mas apenas do seu grupo ou confissão religiosa, com vista a obter benesses particulares. E uma vez sentados na cadeira do poder, por vezes chegam a tentar impor pela lei a toda uma sociedade a sua ética religiosa particular, mesmo a quem não partilha da sua fé.
Acresce que lidamos hoje com uma cultura estabelecida de mentira, máquinas de propagação de notícias falsas com evidentes intuitos políticos,
gabinetes de promoção do ódio, que enganam as pessoas e procuram arregimentar multidões movidas pela indignação contra as instituições, a fim de as destruir, embaladas por populismos de direita e de esquerda, de preferência com temperos religiosos. Nada que nos espante. O problema é que esta cultura de mentira tem contagiado sectores cristãos, levando a comportamentos que rompem frontalmente com os princípios da fé. Dizia S. João Evangelista: “Se alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu?” (1 João 4:20).
Vivemos numa Europa pós-cristã, onde os resquícios de jacobinismo ainda desconsideram o religioso. Três simples exemplos. Há anos o papa Bento XVI foi impedido de discursar numa prestigiada universidade de Roma, apesar do seu percurso de académico brilhante. A justificação não podia ser mais infantil: para eles a religião não tem lugar na universidade. Não sei se o fizeram por ignorância ou sectarismo, quando as primeiras universidades do mundo começaram justamente por leccionar… Teologia.
Outro caso. Recentemente o Conselho de Estado francês decidiu que uma pequena autarquia terá de retirar a estátua do Arcanjo São Miguel que está colocada em frente à igreja local, por se tratar dum símbolo religioso, o que contraria a lei da laicidade, de 1905, segundo a qual é proibido erigir símbolos de carácter religioso no espaço público. Isto num país com apenas 4,3% de ateus e uma maioria de 63,1% de cristãos…
O terceiro exemplo é a recusa em fazer constar a influência histórica de natureza judaico-cristã na origem e construção da Europa, no Preâmbulo do documento da União Europeia que se pretendia ser uma espécie de “constituição.” Negar a evidência histórica é tolice, e evitar a menção em nome do “politicamente correcto” é igualmente descabido.
Em Portugal não temos tido grandes problemas de falta de liberdade religiosa mas apenas algumas limitações iníquas e injustificadas. Porém, importa que os poderes públicos as superem, apesar de a maior parte das vezes a discriminação não residir na lei mas na prática quotidiana.
Estamos, pois, colocados perante enormes desafios em matéria de liberdade religiosa e da sua compatibilização com o quadro geral das liberdades, direitos e garantias, que é suposto que os estados democráticos de direito confiram a todos os seus cidadãos, indistintamente, com base nos princípios sagrados de justiça e liberdade que devem enformar qualquer sociedade civilizada.
Ainda que a liberdade religiosa se torne a regra no nosso mundo contemporâneo, ele ainda continuará a ser profundamente complexo, mas será bem menos violento e injusto, devido à construção dos caminhos da Paz. Sejamos nós os construtores desses caminhos.
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