A pandemia chegou sem pré-aviso e acabou discretamente com um anúncio da Organização Mundial da Saúde. Pelo meio ficou o sequestro das nossas rotinas, o medo, a esperança e a longa espera de mais de 1 000 dias. Para muitas famílias ficou também o luto – mais de 20 milhões na estimativa da OMS. Mas, além do luto, ficou a luta, que poupou um número incomparavelmente superior de vidas.
Com uma letalidade de 10% entre os pacientes mais idosos (cerca de 25% da população num país como Portugal), o vírus causador da Covid-19, o SARS-CoV-2, mostrou-se potencialmente tão perigoso como a gripe espanhola, que dizimou cerca de 2,5% da população mundial, causando 40/50 milhões de vítimas mortais em 1918/1919.
Extrapolando para o crescimento da população mundial até à atualidade (de 2 para 7 mil milhões), é possível concluir que o SARS-CoV-2 teria um potencial para 140/175 milhões de vítimas mortais se deixado em ação livre, sem confinamentos assertivos nem máscaras eficazes, medicamentos ou vacinas. O número é aproximado, mas esclarecedor: contam-se em muitas dezenas de milhões as vidas salvas pela ação empenhada de todos quantos compreenderam a ameaça e reagiram, desde os laboratórios de testagem e investigação até à decisão dos cidadãos que, conscientemente, decidiram isolar-se, usar máscaras e vacinar-se. Entre ambos ficou o jornalismo responsável, que mediou o trânsito de informação credível e fundamentada.
Nunca antes cientistas e jornalistas interagiram tanto e esperemos que o hábito não se perca. A Ciência não é só uma atividade, é uma forma de interrogar, entender o mundo e agir sobre ele. Faz falta mais Ciência no nosso dia a dia e na governação. Como legado da pandemia ficam a persistência de sintomas para alguns pacientes (“Covid longo”), a necessidade de monitorar constantemente o SARS-CoV-2 e outros coronavírus, e a responsabilidade de nos prepararmos melhor para a próxima pandemia.
Tal como a gripe espanhola ou a sida não foram as últimas pandemias, a Covid-19 é apenas a pandemia mais recente; não será a última. Outras virão. Quando? Qual o vírus ou a bactéria causadora? Ninguém sabe, mas todos temos a certeza que é preciso termos medicamentos que sejam eficazes contra uma grande diversidade de vírus ou bactérias e vacinas de desenvolvimento mais célere. É aqui que se centra o esforço da comunidade científica, que continuará o seu empenho, mesmo com o desligar dos holofotes e o cair do pano sobre a pandemia.
Do lado da população, espera-se que continue a valorizar a credibilidade noticiosa, após a avalanche de notícias falsas e manipuladas durante a pandemia. Dos governos, espera-se que apostem forte na promoção da literacia científica e jornalística. Em Portugal, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior ainda vai a tempo desta missão, apesar do surpreendente apagão durante toda a fase pandémica, sem visibilidade nem papel relevante.
De todos nós se espera que não esqueçamos, como aconteceu com a gripe espanhola, por exemplo. A resposta à Covid-19 teria sido melhor se a consciência para o risco de pandemias não tivesse sucumbido em meados do século XX. À gripe espanhola sucedeu-se uma guerra e o esquecimento; à Covid-19 segue-se uma guerra na Europa, mas não pode repetir-se o esquecimento. Com a amnésia, muito do que aprendemos com o luto e a luta na fase pandémica extinguir-se-á. Seria o início do triunfo do vírus ou da bactéria da próxima pandemia.