A invasão russa de 24 de fevereiro à Ucrânia trouxe a perceção de ameaça nuclear de volta ao continente europeu, já que a ameaça, embora letárgica na mente coletiva, permanece desde o final da Segunda Guerra Mundial.
De acordo com o Presidente russo Vladimir Putin, no seu discurso no Kremlin de 30 de setembro do ano passado, os Estados Unidos criaram um precedente para o uso de armas nucleares com o bombardeamento de Hiroshima e Nagasáqui em 1945. A verdade é que essas armas foram tão devastadoras que criaram não um precedente, mas um tabu nuclear, uma inibição normativa contra o uso de armas nucleares.
A grande questão é: estará Putin ansioso por quebrar esse tabu? Talvez não. No entanto, não se pode excluir liminarmente essa possibilidade. Até porque, recentemente o Presidente russo decidiu suspender o Novo START, o último tratado de controlo e desarmamento nuclear entre os EUA e a Rússia. Uma consequência direta do apoio dos EUA e seus aliados à Ucrânia, diz Moscovo. A realidade é que Putin continua a reforçar a sua estratégia de coerção e chantagem nuclear sobre o Ocidente e a Ucrânia. Mas será que o faz de uma forma eficaz?
De acordo com a doutrina nuclear russa, Moscovo condiciona o uso de armas nucleares a situações em que o seu território seja atacado com armas nucleares ou ainda a um eventual ataque através do emprego de armas convencionais e que ameace a própria existência da Rússia. Além disso, um dos principais elementos da dissuasão nuclear russa é a proteção da sua integridade territorial. Porventura, uma eventual invasão da Crimeia por parte da Ucrânia será sempre uma linha vermelha para a ameaça do uso de armas nucleares russas.
O conceito de dissuasão nuclear está intimamente ligado à posse de armas nucleares por parte dos Estados que as possuem. Sendo que a ideia de dissuasão nuclear baseia-se no que o Dr. Strangelove satiricamente descreve, na obra-prima homónima do cineasta Stanley Kubrick, como a capacidade de “produzir na mente do inimigo, o medo de atacar”. A eficácia dessa ameaça deve ser verossímil e compreensível para outros Estados. Além disso, esta mensagem deve ser transmitida com uma ameaça crível de retaliação face ao uso de armas nucleares, o que deverá impedir o comportamento agressivo de um possível ataque adversário.
Contudo, no contexto da atual guerra russo-ucraniana, a dissuasão nuclear russa não tem sido totalmente credível. Se, por um lado, a dissuasão contra os EUA/NATO está a funcionar, permitindo aos russos evitar o confronto direto com os americanos e seus aliados; por outro lado, a Ucrânia, uma ex-república soviética que possuiu outrora armas nucleares até à celebração do Memorando de Budapeste em 1994; parece não ter sido demovida pela retórica russa da ameaça do uso de armas nucleares.
Uma das razões para esse paradoxo nuclear prende-se com a incapacidade de Moscovo, por diversas vezes desde o início do conflito, em usar a coerção nuclear para prevenir certas e determinadas incursões militares por parte das forças militares ucranianas.
Outra razão tem a ver com a incapacidade histórica dos Estados com armas nucleares para dissuadir ou influenciar a tomada de decisão de Estados sem armas nucleares. Veja-se, por exemplo, o caso dos EUA na Guerra do Vietname quando o Presidente Nixon tentou criar a ideia que era irracional e volátil, ameaçando indiretamente o uso dessas armas sobre o Vietname e Camboja. Apesar das ameaças, os EUA, um estado com armas nucleares, acabaria por perder a guerra contra o Vietname, um estado sem armas nucleares. O mesmo poderá acontecer hoje na guerra de Putin contra a Ucrânia
Nesse contexto, o uso de armas nucleares contra forças, bases e centros logísticos ucranianos dificilmente trará algum resultado estratégico militar, podendo expor, não só os territórios fronteiriços da Rússia, mas também da NATO, à radiação em massa. E, consequentemente, ao risco de um confronto militar direto entre a NATO e a Rússia.
Outro cenário é, porventura, o bombardeamento nuclear sobre uma cidade ucraniana para criar um efeito comparável a Hiroxima. Neste caso, pode a Rússia envolver-se num segundo risco nuclear que são as céleres ações de retaliação por parte dos EUA, provavelmente ainda restringindo a resposta nuclear. Note-se que, mesmo um ataque convencional de Washington colocaria Moscovo à beira de uma guerra contra as forças convencionais combinadas dos EUA/NATO, com a forte possibilidade de escalar para um nível nuclear.
Em alternativa, os EUA e o Ocidente, ainda podem usar a ameaça de sanções secundárias como um desincentivo ao uso de armas nucleares por parte dos russos. Embora a Rússia já seja considerada um Estado pária por parte dos EUA e seus aliados, a maior parte do mundo (África, América Latina e Ásia) ainda faz negócios com a Rússia. Como tal, qualquer uso de armas nucleares na Ucrânia pode levar a maioria desses países, incluindo China e Índia, a cortar relações e negócios com Moscovo. Neste cenário, os EUA e a UE poderiam ainda estar dispostos a implementar sanções secundárias contra países que continuariam a fazer negócios com a Rússia na tentativa de influenciar o comportamento destes Estados. Esse tipo de dissuasão económica também poderia dissuadir a Rússia de usar armas nucleares na Ucrânia com receio de ainda maiores externalidades económicas negativas.
Por fim, um eventual sucesso no uso de armas nucleares nuclear ou mesmo coerção nuclear sobre a Ucrânia abriria a caixa de Pandora para a Europa. Um dos riscos deste cenário para a segurança europeia seria o aumento da capacidade russa para começar a ameaçar e subjugar outros Estados da ex-União Soviética fora do espaço NATO, como a Geórgia, ou a Moldávia. Além disso, outros Estados revisionistas, como a China, Coreia do Norte e Irão, poderiam usar esse precedente de chantagem nuclear para expandir os seus próprios interesses políticos e territoriais contra Estados vizinhos. Esta desordem nuclear abriria caminho para que os Estados deslegitimassem o tabu nuclear, levando, inexoravelmente, ao fim da tradição do não uso de armas nucleares, com consequências imprevisíveis para a paz mundial.
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