A 27 de dezembro do ano passado, o ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, disse o seguinte, na Assembleia da República: “Não autorizei nenhum acréscimo de despesa para além dos 750 mil euros [na reabilitação do Hospital Militar de Belém], nem, aliás, me foi solicitado que autorizasse.” Esta semana, dia 23 de janeiro, confrontado pelos jornalistas, declarou: “Houve uma estimativa inicial, veio a perceber-se, um pouco mais tarde, que essa estimativa inicial era insuficiente e que o custo real seria superior; não havia razão nenhuma, naquele momento, para travar o que quer que seja, pelo contrário!.” No mesmo passo, o ministro negou que tenha mentido aos deputados. “O grande problema, aqui, é a falta de autorização para incorrer em despesa. Essa é que é a questão central, que já levou a uma condenação no Tribunal de Contas e que está agora a ser investigada pelo Ministério Público.”
Recapitulemos: em dezembro, o antigo ministro da Defesa disse ao Parlamento que não tinha autorizado qualquer acréscimo de despesa. Esta semana, disse que não havia nenhuma razão para travar a obra em causa – ou seja, nem o acréscimo de despesa era razão. Certo? As explicações são confusas, mas a conclusão é clara: o ministro sabia, mas não autorizou. Só que – segundo revela agora, e só agora – também não proibiu. Portanto, tecnicamente, a primeira declaração, proferida no púlpito da Assembleia da República – “Não autorizei a despesa” –, não é mentira. É apenas o regresso do sketch de Ricardo Araújo Pereira: “É proibido. Mas pode-se fazer.”
Um orçamento inicial de 750 mil euros transformou-se numa conta de 3,2 mil milhões. Não é uma derrapagem: é um despiste com mortos e feridos. A máxima do “quem cala consente” foi transferida para a decisão política. Convém lembrar que qualquer liderança é responsável pelo que faz e pelo que deixa fazer. E só depois de estar feito, é que Cravinho enviou [o caso da derrapagem] para o Tribunal de Contas e para a Inspeção-Geral de Defesa Nacional. Em abono de Cravinho, é preciso contextualizar. E para garantir a boa-fé na análise, citemos as palavras atenuantes do próprio ministro: “Era um momento em que as nossas sociedades tinham muito rapidamente de se preparar para enfrentar algo de completamente inesperado. Naquele momento, era uma prioridade absoluta erguer uma capacidade para receber futuros doentes Covid, num edifício que precisava de ser recuperado para esse efeito.” O que nos está a dizer Cravinho? Que, perante uma emergência, era preciso passar por cima de algumas coisas. Como salvaguarda, aliás, existia a lei de exceção 10A de 13/3/2020, que permitia a autorização de despesa neste contexto. Interrogado, esta terça-feira, na AR, porém, Cravinho persiste na tese de que, não tendo recebido qualquer ofício com o detalhe para a dita derrapagem, apenas uma informação vaga sobre um aumento da despesa, não podia ter autorizado a mesma. Ora, isto não joga com as declarações da véspera: “Não havia razão nenhuma, naquele momento, para travar o que quer que seja!” Então, autorizou ou não autorizou?
Por esta ordem de ideias, qualquer obra decidida em contexto de emergência poderia custar o que fosse preciso, porque não “haveria razão para ser travada”. Música para os ouvidos de promotores de obras públicas, mas cacofonia para os contribuintes – e para governantes responsáveis. Um acréscimo de despesa pode acontecer. O que se pede a uma tutela é que, mal tome conhecimento, pergunte, indague sobre os motivos da derrapagem e que, sendo ela justificada, decida, então, se, em termos de custo-benefício, se deve ou não suspender uma obra. Algum destes passos foi dado? Ou Cravinho limitou-se a confiar na sua “não autorização”, não tomando qualquer medida proativa? Ainda não sabemos.
Entretanto, o ministro comentou o questionário das 36 perguntas, destinado a futuros membros do Governo – mas que o Presidente Marcelo quer ver aplicado aos atuais (posição importante mas que não cabe analisar hoje, neste espaço): “Já fiz o exercício mental, olhando para as perguntas. Não tenho dúvidas de que posso responder a esse questionário sem problemas.” Ou seja: não é um questionário. É um convite a um “exercício mental”. Na velha fábula portuguesa O Velho, o Rapaz e o Burro, um idoso e o seu neto acabam ridicularizados, quando, “para tapar a boca ao mundo” (e calar a opinião pública que os condena), ambos acabam como montadas do solípede. Mas só pioram as coisas: “Olhem dois loucos varridos, fazendo o mundo às avessas, tornados burros do burro!.” O questionário de 36 perguntas não passa de um estratagema inventado à pressa para tapar a boca ao mundo. Um mundo às avessas: às vezes, não é a maioria absoluta que carrega o Governo – mas o Governo que, penosamente, parece carregar o fardo da maioria absoluta.
Golpe de Vista
Os transgénero e a Grécia Antiga
A invasão do palco do São Luiz, por uma ativista, exigindo que uma personagem transgénero fosse representada por uma atriz também transgénero, parece um ato wokista ridículo. Mas depois lembramo-nos de que, na Grécia Antiga, as mulheres estavam terminantemente proibidas de representar. E que as personagens femininas eram representadas por homens. E que esse interdito também chegou a vigorar no tempo de Shakespeare. E que, em Portugal, ainda existia nos finais do século XVIII. E ficamos a pensar: será que?…