Antes de mais, quero desejar a todos um feliz Natal. Independentemente de tudo, acreditem que vos desejo as maiores felicidades, pois afinal é algo que me é inato, a vontade e a alegria de vos ver felizes. É, no fundo, uma pequena declaração de interesses, porque sempre vivi avidamente para esse fim. Dito isto, peço-vos agora a vossa maior atenção, que vou contar a minha história.
I
O meu nome é Lúcio e sou um cão. Não me recordo exatamente de quando percebi ser esse o meu nome, mas lembro-me bem de receber carinho quando corria alegremente na procura de quem me chamava. As crianças, tratavam-me habitualmente por Lu, e era com elas que passava grande parte do meu tempo ativo. Os Pais passavam menos tempo comigo, mas eram quem me dava comida e quem liderava os passeios diários. Da minha cachorrice, não guardo especiais memórias. Lembro-me essencialmente do toque da língua da minha mãe, do aroma do leite e das mordidelas dos meus irmãos. No entanto, a memória mais vívida e especial que tenho, é do dia em que conheci a minha família humana. Foi toda uma amplitude de emoções, fazendo um percurso saltitante entre a angústia de abandonar repentinamente o meu pequeno mundo, e o contacto e movimento constantes daqueles que me acolhiam, de uma maneira completamente distinta da que tinha conhecido até então. Era essa a grande diferença, porque ali eu era o centro, eu era único, eu fui o escolhido e ninguém queria saber de outro Lúcio que não de mim. Um mundo maior, mais diverso, mas de um Lúcio só. Enfim, era o meu mundo e era perfeito!
A vida foi acontecendo. Na maioria do tempo divertia-me bastante, tinha muita atenção e a minha única preocupação era aguardar, pacientemente, que a família regressasse a casa. Com o passar dos anos, fui aprendendo a saber o que esperar com o início de cada estação. A do inverno era a que menos gostava, estando associada ao frio, à chuva e ao Natal. À parte do conforto de poder deitar-me junto à lareira, absorvendo o calor direto do fogo no meu dorso, e o da tijoleira no meu peito e no meu ventre, era porventura a altura do ano em que recebia menos atenção. Vinham os primos das crianças, que entretendo-se entre si, me deixavam um pouco de parte. Excecionalmente, brigavam e lá vinha um chorar para o meu colo, contacto que eu bastante prezava, mas que era apenas passageiro. Além disso, o inverno era por si só uma fase chata. Passeios curtos e com chuva, algo que me incomodava bastante, que eu nunca gostei de me molhar. Mas tudo passava, e essa garantia tranquilizava-me.
Sinceramente, acreditei que seria assim para sempre. Quero dizer… na verdade, nem perdia tempo a pensar que pudesse ser diferente. Simplesmente, nunca me passou pela cabeça que houvesse uma realidade alternativa, pois afinal, por que motivo haveria ela de existir? No meu mundo apenas tinha lugar a minha família, eles pertenciam-me. Pertenciam-me de maneira altruísta, na medida em que eu lhes pertencia reciprocamente, sendo parte de um todo, que não faz sentido ser esculpido de outra forma que não aquela, a que fazia com que uma escultura fosse completa, firme, bonita, perfeita…
II
Julgo que não devesse faltar muito para o Natal, quando certo dia me levaram a passear a uma hora diferente da habitual. As crianças ficaram em casa, algo que na altura me pareceu bem, pois estava bastante frio. Apesar de não ser muito frequente, o Pai levou-me de carro. Inicialmente, estava entusiasmado com a expectativa de poder ir à janela, mas lembro-me de ficar desiludido por não ter tido direito a esse mimo. O tempo de viagem prolongou-se muito mais do que o costume, o que me fez começar a ficar impaciente. Tentei interagir e pus-me a resmungar com o Pai, mas ele não olhava para mim.
Já eu tinha desistido de impor a minha presença, quando finalmente senti o carro a abrandar, até pararmos numa zona campestre. Como de costume, o Pai abriu-me a porta do carro e soltou-me da trela, para que eu pudesse ir cheirar as redondezas, mas hesitei por não conhecer o sítio. Ele acabou então por tomar o passo e eu segui-o, naturalmente, apercebendo-me que na mão levava um saco com a minha comida. Fiquei tão contente! Nesse dia ainda não me tinham dado comida, mas felizmente o Pai tinha-se lembrado de mim. Mais à frente, junto a uma árvore, abriu o saco e pousou-o no chão, expondo uma quantidade generosa de alimento, que me deleitou até já não restar um único grão no fundo, tendo ficado aconchegado, satisfeito e feliz, muito feliz. Caramba, podia jurar que era o cão mais feliz de sempre.
III
Tinha acabado de comer e ainda lambia os lábios, quando senti as primeiras pingas no focinho. Chuva, como eu odeio a chuva. Despachei-me a encontrar um sítio cheiroso para fazer chichi, que com a fome que estava, ainda nem tinha perdido tempo para aliviar essa outra necessidade. Se a memória não me falha, não tinha alçado a perna mais de duas ou três vezes, quando me apercebi que tinha perdido o Pai de vista. Sem perder tempo, não fosse ele chatear-se comigo, dei uma corrida rápida na direção de onde tínhamos vindo, mas continuava sem o ver…
Comecei a chamar por ele e decidi correr novamente para onde tinha estado a comer. “Talvez ainda esteja lá!”, pensei. Mas não, não estava. “O carro!!!”, ocorreu-me então, correndo novamente de regresso, com a certeza de que o iria observar à porta, a chamar por mim, mas o carro também tinha desaparecido. Automaticamente, o meu pensamento encheu-se de preocupações… afinal, o que se teria passado com ele? Em poucos segundos, abateu-se em mim uma mistura horrível de sentimentos de confusão, frustração e ansiedade. Nunca havia estado numa situação daquelas e quando me apercebi, tinha começado a ladrar desalmadamente, em desespero.
. . .
Não sei bem precisar quanto tempo teria passado, quando finalmente desisti de esperar. A chuva, entretanto, tinha parado. Pensei poder ser uma boa notícia, pois talvez conseguisse farejar o cheiro do Pai, mas rapidamente percebi que não conseguia apanhar o rasto, nem sequer um ligeiro aroma do seu perfume. Apesar de cansado, subitamente a ansiedade voltou a subir. Algo de muito errado se passava e precisava de sair dali, precisava de partir à procura do Pai. Abanei-me, sacudindo um bom volume de água do meu pelo, coisa que me fez recordar das crianças, divertidas a darem-me banho e foi esse o pensamento que me deu a coragem que precisava para sair dali.
IV
Passaram-se dias. Sentia-me fraco e estava exausto. Tinha conseguido comer alguns restos de arroz, que estavam colocados numa tacinha perto de uma fonte, numa vila que não me recordava de algum dia ter visitado. Permaneci lá algum tempo, não sei bem à espera de quê. Talvez acreditasse que a minha família pudesse passar por ali, ou então foi o facto de uma menina ter vindo ter comigo, na tarde em que cheguei. Ela aproximou-se de mim e deu-me um carinho na cabeça, coisa que fez a minha cauda despertar da sua inatividade de vários dias, e adensar automaticamente a saudade que sentia das crianças. Soube bem, mas também terminou prontamente, com a chegada repentina da mãe da menina, que se apressou a enxotar-me enquanto a repreendia. Algumas noites depois, decidi seguir caminho.
V
Os dias de Sol acabaram por regressar. Por essa altura, limitava-me a procurar alimento e abrigo. De noite, sonhava recorrentemente com as crianças, algo que terminava invariavelmente com um acordar para a desilusão e angústia. Fui-me apercebendo de outros cães com o mesmo problema, boa parte deles, certamente com mais tempo de solidão. Sentia isso no seu olhar. Quanto às pessoas, começou a ser raro olharem para mim. Aliás, julgo que a maioria passava por mim sem me ver, de todo. De vez em quando, sempre que alguém me fitava por mais do que um par de segundos, por um momento poderia jurar que era o Pai, e tinha a sensação de ouvir chamarem o meu nome – “Lúcio! Aqui, Lúcio!”.
VI
Nunca desisti de procurar a minha família. Tinha a certeza de que estariam algures por aí, provavelmente transportando o mesmo olhar, provavelmente sentindo a mesma dor. Foi com eles, em pensamento, que consegui continuar a minha jornada, por muito que custasse. Mas a minha solidão ia-me consumindo, uma dentada de cada vez, como se se tratasse de um ser demoníaco, que com os seus dentes afiados se alimentava de mim, de forma cruelmente lenta e lancinante. Carregava comigo toda a dor do mundo.
. . .
Era novamente inverno. Muito se passou no espaço de um ano, incluindo ter sido atropelado por um carro. Uma das minhas pernas não reagia, os meus dedos arrastavam pelo chão e estavam constantemente em ferida, mas eu continuei sempre a caminhar.
Por fim, a minha perseverança acabou mesmo por me conduzir ao meu destino.
É verdade. Por inacreditável que possa soar, acabei mesmo por chegar ao portão da minha casa. Encontrei-os, finalmente. Tinha a certeza, aquela era a casa. Conseguia, inclusive, sentir o cheiro característico que ela tinha durante época natalícia. Só queria entrar! Já conseguia imaginar a alegria das crianças quando me vissem… tudo o que importava era estar com elas. Tentei ladrar, só que tinha perdido a voz. Então ergui-me, com o esforço da única perna que o conseguia fazer, na esperança de ser visto.
Não tive de esperar muito, para que uma das minhas crianças me avistasse. Consegui ouvi-la chamar os irmãos e os pais, que acorreram à janela para me observarem. Senti um ânimo e felicidade enormes, acreditando estar na iminência de me reunir novamente com a minha família. Não consegui entender bem o que falavam uns com os outros, mas pude vê-los afastarem-se da janela, enquanto o Pai fechava as cortinas. Caía o pano, terminava a cena e a peça. Era apenas uma questão de tempo para que a porta se abrisse e eles saíssem a correr para mim, o Lúcio, o Lu, o cão que completava aquela família.
. . .
Acabei por ter de me deitar e aproveitei para lamber a ferida da minha pata. Doía bastante, mas não importava. Nada mais importava do que estar ali. “É só esperar mais um pouco”, pensei, apesar de não entender o motivo da demora. Aproveitei para fechar os olhos brevemente, e recordar algumas memórias com as crianças. Iria poder reviver tudo isso com elas, assim que me viessem buscar. Voltei então a abrir os olhos, apercebendo-me de que já tinha escurecido. Mas não, nessa noite não iria procurar abrigo. Precisava somente de esperar que a minha família me levasse para dentro.
VII
Demorei até perceber que ia ter de passar a noite na rua, mas de facto era o que acontecia sempre que me portava mal, já quase me tinha esquecido disso. Talvez fosse um castigo pela minha ausência, devia ser isso…
Dei um longo suspiro, e enrosquei-me o mais que consegui. Estava com frio e muito cansado, necessitava de repouso. De onde me encontrava, conseguia ouvir ao longe os risos das crianças lá em casa, tendo esse som alimentado a felicidade que ainda restava em mim. Por fim, embalado nesse sentimento, pensei uma última vez antes de adormecer: “É só esperar mais um pouco”.