No calendário, o Dia Nacional de Desburocratização dista cerca de um mês do Dia Nacional da Cultura Científica. Na realidade, a desburocratização e a atividade de investigação científica em Portugal estão separadas por anos-luz. O preço paga-se na eficiência e no esforço exigido aos investigadores. Quando o mar de Burocracia bate na rocha da Ciência, é aos investigadores que cabe o papel de mexilhão. Mudar exige sapiência, racionalidade e critério porque não podemos confundir a burocracia inconsequente com os procedimentos administrativos fundamentais que garantem a transparência dos processos e são os alicerces da meritocracia.
A última quinta feira do mês de outubro marca a passagem do Dia Nacional de Desburocratização. O Dia Nacional da Cultura Científica celebra-se a 24 de novembro. É agora a altura ideal para reavivar o lema “Mais ciência, menos burocracia.”, tantas vezes repetido por investigadores e outros profissionais do mundo académico, mas tão poucas vezes refletido.
Os procedimentos administrativos são essenciais para uma vida coletiva organizada, capaz de ser entendida pelos cidadãos e capaz de prestar contas a esses mesmos cidadãos. Neste sentido, são o garante da transparência e justiça das decisões e o garante da meritocracia. No entanto, na dinâmica dos processos é vulgar a evolução para o “oficialismo”, em que a exigência do preceito da forma se sobrepõe ao cumprimento dos objetivos finais, em que a proliferação de procedimentos se descontrola sem um propósito tangível, em que deixamos de ter a noção da inconsequência e inutilidade dos atos processuais, em que o único efeito prático é o atraso de resultados e o desperdício de recursos por redução da eficiência. É o triunfo da burocracia.
Distinguir o trigo do joio não é tarefa fácil. Dito de outra forma: distinguir a administração vital para mantermos uma sociedade saudável da burocracia que a asfixia não é trivial e exige uma consciência clara do que, em processos administrativos, é essencial ou é completamente dispensável.
O tema da distinção da “boa burocracia” e “má burocracia”, por analogia com o “bom colesterol” e o “mau colesterol”, é particularmente importante no mundo das profissões criativas, como é o caso da investigação científica. Criar exige concentração e tempo, e o tempo é um recurso finito. Não estica. Tempo mal usado é tempo desperdiçado; não podemos acrescentar horas ao dia para compensar o tempo mal usado. Tempo dedicado às “más burocracias” é tempo retirado ao objetivo final real da profissão, a investigação, e tempo roubado às “boas burocracias”, como as atividades de avaliação de mérito dos resultados de investigação.
A evolução vertiginosa das tecnologias de comunicação trouxe consigo a facilidade de trocar e rever documentos, que, por sua vez, aumentou de forma igualmente acelerada a facilidade de fazer proliferar procedimentos administrativos.
A investigação vê formarem-se no seu domínio quilómetros e quilómetros de procedimentos administrativos que remetem para segundo plano o propósito real da investigação científica: produzir conhecimento para melhor entender o mundo e contribuir para o progresso civilizacional. A pretexto da defesa de valores fundamentais da Ciência, como a ética, o acesso aos dados e resultados, a transferência dos resultados para a economia e a comunicação, entre outros, exige-se aos investigadores procedimentos cada vez mais pesados e labirínticos.
O tempo dos investigadores é exaurido. O magro orçamento da investigação passa a ser canalizado para empresas especializadas no auxílio aos aspetos administrativos, nos aspetos jurídicos e na formação para lidar com a burocracia, por exemplo. A massa corporal do mundo da investigação aumenta, mas a massa muscular diminui. Avança a obesidade e a aterosclerose; é o síndrome metabólico a tomar conta do mundo da investigação.
Remediar não é fácil e é arriscado. É fácil cortar os procedimentos administrativos que são essenciais, como os que são próprios da avaliação entre pares, por exemplo, e é difícil cortar procedimentos administrativos de exigência legal, mas de utilidade duvidosa, como exigir relatórios que, depois, ninguém lê ou avalia. A tentação de fazer o que é mais fácil é grande quando a pressa é muita e o discernimento é pouco.
O emaranhamento crescente das configurações das instituições científicas e suas redes, com camadas sucessivas de procedimentos de candidaturas e prestação de contas redundantes e sobrepostos, é o exemplo do que não deve ser feito. Infelizmente, exemplos contrários de boas práticas não abundam.
Um plano cirúrgico de atuação sobre as “más burocracias” e preservação das “boas burocracias” na investigação científica (e no mundo das profissões criativas em geral) exige determinação para lutar contra práticas enraizadas, muita visão para distinguir o trigo do joio e muita assertividade para que o plano não caia, ele próprio, nas teias da “má burocracia”. Com tal plano hoje, poderíamos, dentro de um mês, fazer uma comemoração muito mais feliz do Dia Nacional da Cultura Científica.
A cobra da burocracia
O Instituto de Estudos Económicos e Sociais da Eslováquia instituiu, em 2017, uma medida de burocracia que consiste em medir o comprimento que teriam as páginas de papel de todos os processos de criação e funcionamento, no primeiro ano, de uma pequena empresa se colocadas completamente alinhadas. Chamaram-lhe a Cobra de Burocracia. Estimaram que a cobra da burocracia, em 2017, media 200 metros, que é uma medida do fardo administrativo de criar e manter um pequeno negócio durante um ano. Feito o mesmo cálculo para um grupo de investigação em Portugal, chegamos a 350 metros! Um grupo de investigação em Portugal produz documentação que, se alinhada em páginas A4, praticamente daria para dar a volta a um campo de futebol. É esta a nossa cobra de burocracia, que não queremos para animal de estimação.
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