A 26 de outubro de 1928, num documento publicado na edição n.º 146 do Pravda, José Estaline define os termos da autocrítica, considerando-a indispensável para o sucesso da revolução bolchevique: “A autocrítica não pode ser considerada algo efémero e de curta duração. A autocrítica é um método particular, o método bolchevique de educação dos quadros do partido e de toda a classe operária, no espírito do desenvolvimento revolucionário.” E prossegue, na perspetiva do pleno uso dos poderes da ditadura do proletariado: “Às vezes, diz-se que a autocrítica é boa para um partido que não está no poder ainda e nada tem a perder’, mas que é perigosa e nociva para um partido que já se encontra no poder, rodeado de forças inimigas, que podem usar contra ele as suas debilidades, postas a descoberto. Isso é errado. Absolutamente errado! Ao contrário, precisamente porque o bolchevismo chegou ao poder, precisamente porque aos bolcheviques lhes pode subir à cabeça os êxitos da sua obra, precisamente porque os bolcheviques podem não se aperceber das suas debilidades e, desta forma, facilitar a obra dos seus inimigos, a autocrítica é necessária e mais ainda agora, fundamentalmente, após a tomada do poder.”
Está lá tudo: a retratação, na esperança da reabilitação; a prostração perante os camaradas; os protestos de fidelidade ao líder; a renovação dos votos; e a coação sem escapatória
Ora, num exercício que muitos consideraram humilhante – e um ex-ministro de António Guterres, Eduardo Marçal Grilo, na Rádio Observador, caracterizou como uma postura “franciscana” – o que o ministro das Infraestruturas e da Habitação fez, na sua confissão desta quinta-feira à tarde, foi um exercício clássico de autocrítica estalinista. Estão lá todos os ingredientes: a necessidade de retratação pública – perante o povo e não apenas perante os seus camaradas -, os protestos da fidelidade ao partido e ao líder, a prostração perante os seus camaradas (“os meus colegas do Governo”), a renovação dos votos “revolucionários” (“o trabalho que não fica manchado com esta falha”) e a coação sem escapatória – uma reunião prévia de 40 minutos com António Costa onde lhe foram definidos os termos da cartilha autoflagelante. Visto e revisto o degradante espetáculo, é um decalque do método estalinista.
Antes, durante e depois das purgas estalinistas dos anos 30, a autocrítica, exercida na esperança de uma reabilitação, como parece ter sido o caso, culminava, muitas vezes, numa execução sumária, quando Estaline havia determinado que já nada havia a fazer pelo camarada tresmalhado. Ainda assim, como nos tempos da Inquisição, o supliciado era convidado a manifestar o seu arrependimento, e ele, mesmo sabendo que seria liquidado, prestava-se a isso, mediante a recompensa de uma morte rápida. Como aconteceu em processos como os de Zinóviev e Kamenev, em 1936.
Pedro Nuno Santos, que podia ter saído a bater com a porta e apregoando que não o deixaram fazer – “realizar”, “concretizar” (palavras suas, na hora da contrição), preferiu perder a dignidade, depois de ter perdido a credibilidade. Porque o terá feito?
Pedro Nuno Santos tem responsabilidades perante os seus e uma clientela partidária fiel e dependente. Ao não sair do Governo, sacrifica-se pelos seus, os que não pode abandonar e que, por isso, o levarão em ombros, num futuro distante. É verdade que, por momentos, entra em “modo Cabrita”: um ministro fragilizado, acossado e olhado de soslaio, com ar trocista, pelos seus rivais internos, no Conselho de Ministros. Mas isso pouco importa: este já não é o seu Conselho de Ministros. Pedro Nuno vive já num Conselho de Ministros futuro, aquele a que ele próprio presidirá. Jovem, carismático, ambicioso e “fazedor”, com um ímpeto reformista que falta a António Costa – e que, por isso, tantas vezes se sente frustrado e exasperado, “as coisas não andam”… – sabe que o tempo é o seu maior aliado. Resta-lhe, depois do inédito exercício de humildade (para alguém com aquelas características psicológicas), ensaiar outra faceta que também não se lhe cola: a da paciência. Por isso em vez do misericordioso tiro na nuca reservado por Estaline a quem se retratava, escolheu a morte lenta de uma permanência no Governo, esperando a ressurreição. Passada a turbulência, recuperará, intactas, as suas possibilidades, dentro do partido. Um golpe de rins no Governo, a TAP recuperada, a ferrovia relançada, um discurso empolgante no próximo congresso e a fidelidade canina dos apaniguados, que farão do episódio da sua destratação, pelo primeiro-ministro, o germe da futura conspiração contra António Costa, é quanto lhe basta. E se, ao final do dia, a “solução Pedro Nuno Santos”, a dos três aeroportos (dois provisórios até à construção do definitivo) for a que seguir por diante, terá dado a volta por cima e inscrito o seu nome na História, como o ministro que concretizou o projeto que, nos últimos 50 anos, todos, antes dele, falharam: lançar o novo aeroporto de Lisboa. O “Aeroporto Pedro Nuno Santos”!
PS – Já António Costa, que prefere tê-lo por perto e controlado a tê-lo longe e fora de controlo, fica agora com ónus do encargo das Infraestruturas. Como avisou Marcelo, o mérito do que correr bem ficará a dever-se aos colaboradores certos e o que correr mal é da responsabilidade do primeiro-ministro que, então, terá escolhido os errados. Cristalino.