A caminho dos 50 anos de democracia, Portugal ainda é um país “acientífico”. A pandemia em curso trouxe visibilidade à investigação científica mas, paradoxalmente, também revelou como não incorporámos cultura científica no nosso modo social de ser e agir. A dificuldade em formular um plano antipandemia, de o implementar e de ser consequente com ele tem demonstrado isso mesmo.
Espera-se de um plano de ação com base científica que comece por identificar quais os indicadores mais importantes para guiar as decisões futuras, que selecione as medidas mais importantes para alcançar os objetivos, que estabeleça a progressão dessas medidas em função da evolução dos indicadores e que preveja a sua própria monitorização e avaliação contínua.
Em contraste, em Portugal, demorámos um ano para identificar os indicadores considerados relevantes para aplicação das medidas de combate à pandemia: a incidência (isto é, o ritmo de aparecimento de novos casos) e o Rt (índice de transmissibilidade). Fizemo-lo na forma da matriz de risco, ao mesmo tempo que estabelecemos os valores críticos para um e outro: incidência superior a 120 casos por 100 mil habitantes em 14 dias ou Rt superior a 1 justificariam medidas de mitigação.
No entanto, com ambos os valores persistentemente elevados, cedo se subiu a fasquia de 120 para 240. Mais tarde, com a pulverização destes números, em junho de 2021 a matriz de risco foi abandonada e adotado um plano de níveis, com cada nível a corresponder a uma situação epidemiológica e a um pacote de medidas.
No derradeiro passo, o abandono das medidas mais generalistas ficaria indexado à descida da mortalidade abaixo do nível internacionalmente recomendado como meta. Mais uma vez, sem que os indicadores diminuíssem como esperado e não tendo atingido o objetivo, se colocou a montanha no lugar do Maomé: a generalidade das medidas (máscaras, testes, lotações) foi abandonada antes do objetivo atingido. Como é da nossa tradição, a ação tem sido pautada mais pelo empirismo e pela intuição do que pelos factos e pelo planeamento racional que a cultura científica aconselharia.
Igualmente significativo sobre o nosso caráter “acientífico”: em dois anos de pandemia também nunca se aprofundou o conhecimento sobre os fatores fundamentais para as cadeias de transmissão. Teria sido importante, por exemplo, aferir o papel da convivência nas escolas ou do uso dos transportes públicos nas cadeias de contágio para tomar medidas mais consistentes e eficazes nestes domínios, minimizando polémicas e ruído.
De igual forma, as causas subjacentes à persistência de uma mortalidade elevada em 2022 teriam merecido algum apuramento de causas (não vacinação? condições de vida dos afetados? fragilizados por outras doenças?…), à semelhança do que foi recentemente anunciado sobre o aumento da mortalidade materna em 2021.
Queremos acreditar que a pandemia terminou, mas bastam três dias de Covid-19 para matar tanta gente quanto a tragédia do acidente de Entre-os-Rios. Basta um mês de Covid-19 para matar tanta gente como um ano inteiro de sinistralidade nas estradas portuguesas.
A realidade pode ser tida por uma ilusão, mas é uma ilusão muito persistente, como notou Einstein. Não nos iludamos: a realidade não mudou e ainda precisamos de um plano para lidar com a pandemia e os seus efeitos a prazo.
Saber planear atendendo à pluralidade de opiniões e conseguir ser consequente com esse plano, sujeitando-se e enfrentando o contraditório, é um sinal de incorporação de cultura científica na governação e no modo de vida. Devíamos adotar essa meta… e ter um plano para lá chegar.
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