Nas últimas três décadas, a realidade das crianças em Portugal mudou. Registaram-se progressos assinaláveis em domínios específicos, como a diminuição da taxa de mortalidade infantil, o aumento da escolaridade ou os ganhos ao nível da vacinação, mas permanecem por resolver questões significativas no que diz respeito a situações de discriminação e desigualdade, de violência e exploração, de sobrevivência e desenvolvimento que põem em causa o bem-estar das crianças. As medidas de combate da epidemia de Covid-19, vieram agravar problemas existentes e criar novos desafios para as crianças que vivem e crescem no País, como o agravamento do fosso nas aprendizagens escolares ou os indicadores de saúde mental, pondo em risco o seu presente e o seu futuro.
Nas conclusões do Comité dos Direitos da Criança dirigidas a Portugal, em 2019, é reconhecido que foram tomadas “medidas de política, institucional e legislativa importantes para a implementação da Convenção sobre os Direitos da Criança em Portugal”, mas são apontadas áreas criticas de melhoria que o País tem que priorizar, e que vão desde a pobreza infantil, desinstitucionalização, combate à violência sobre as crianças, em particular, o abuso sexual e exploração sexual, segurança no mundo digital, proteção das crianças migrantes, refugiadas e requerentes de asilo até à urgência da existência de uma abordagem global de implementação dos direitos da criança, em que os princípios da Convenção, em particular o superior interesse da criança, sejam orientadores da mesma.
Os próximos 10 anos vão certamente acelerar muitas das tendências a que estamos a assistir, sendo crucial investir no bem-estar de todas as crianças. Espero que o próximo Governo assuma o compromisso de definir e/ou renovar as suas prioridades de forma a promover, proteger e respeitar os direitos da criança em todas políticas públicas, procurando obter resultados concretos, associados a um conjunto de prioridades, com medidas e ferramentas adequados e fornecendo os meios legislativos e financeiros para a sua implementação, a par da criação de estruturas de coordenação e governação (governamentais e independentes) e parcerias adequadas.
Face aos desafios e ameaças atuais, considero que as prioridades deveriam passar por: investir na melhoria dos serviços públicos dirigidos às criançasem áreas como o acolhimento, a educação e a saúde; proteger os direitos de maternidade e paternidade; combater a pobreza infantil; investir na promoção e proteção da saúde mental das crianças; garantir o acesso equitativo e de qualidade à educação; investir na educação pré-escolar; investir numa “justiça amiga da criança” antes, durante e depois do processo judicial, respeitando o seu direito a ser ouvida; criar uma abordagem intersectorial de proteção das crianças em situação mais vulnerável; promover a desinstitucionalização criando respostas na comunidade; eliminar todas as formas de violência; proteger a segurança das crianças no ambiente digital; e promover o direito à participação da criança, criando verdadeiros mecanismos de participação.
A par destas prioridades, Portugal e os restantes países da UE terão que enfrentar um dos maiores desafios desta década, e que passa por assegurar a proteção de 7,5 milhões de crianças ucranianas. Segundo informação da UNICEF, desde o início da ofensiva da Rússia, em 24 de fevereiro, mais de 1,5 milhões crianças já fugiram para os países vizinhos para escapar da violência do seu país, correndo-se o risco desta crise se transformar numa catástrofe para os direitos da criança na Ucrânia. Muitas destas crianças refugiadas chegam a um novo país e precisam lidar com perdas e traumas inimagináveis até para nós, adultos. Às vezes, estando completamente sozinhas, sem pais ou responsáveis.
A situação já mereceu da Comissão Europeia aconselhamento aos países, entre outras coisas, que as crianças não acompanhadas “devam ser imediatamente nomeadas com um tutor legal ou representação apropriada”. Em concreto, pede-se ao primeiro país de entrada na UE que verifique a “identidade das crianças e a dos adultos com quem as crianças continuam a sua viagem” e realize “controlos rápidos para prevenir e detetar possíveis casos ou riscos de abuso ou tráfico de seres humanos”. Em consequência Portugal, criou uma Plataforma registo e proteção para crianças ucranianas.
Convém referir que em Portugal as crianças que cheguem ao nosso país sozinhas, é tarefa dos Tribunais, nomeadamente aos de Família e Menores, decidirem relativamente ao seu futuro, bem como ao Ministério Público, representá-los e promover o seu bem estar físico e emocional, nomeadamente, promovendo quer a sua integração em instituição estatal, quer o acolhimento familiar, ou, em sede de medida a aplicar em processo de promoção e proteção – destinado a acautelar situações em que a criança se encontre em perigo – aplicar a medida de proteção de confiança a pessoa (s) idónea (s).
Reconhecer as necessidades das crianças como uma prioridade, independentemente do seu estatuto legal, é reconhecer o princípio superior interesse da criança, como uma consideração primordial em todas as decisões relativas às crianças, a par do seu direito a serem ouvidas. A realização deste princípio permite assegurar à criança o acesso efetivo aos seus direitos.Agora, é tempo de agir!
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