De repente, o tema da seca quase rivaliza com o do vírus, entra-nos em casa por todos os lados. Como se a seca fosse assim – não chove em dezembro e janeiro e, de uma semana para a outra, temos seca. É também por estas e por outras que o comum dos cidadãos não leva a coisa a sério e muito menos considera a situação crítica. Antes de os media noticiarem a seca e mostrarem imagens do nível de armazenamento de algumas barragens a situação era outra? Não. Entretanto, surgiram algumas notícias que podem evidenciar opções erradas na utilização da água armazenada, e aí terá “começado a seca”. A 20 de janeiro passado, em plena campanha eleitoral, foi anunciado e festejado que o novo bloco de rega de Reguengos de Monsaraz, mais 11 mil hectares, vá ser finalmente construído. É assim que se gere a seca… Bastou o último ano hidrológico ser próximo do normal para mais ninguém pensar no assunto.
“A seca é tão natural como a sua sede”, lembra a antiga publicidade de uma consagrada marca de água. A seca não é, ou não devia ser um problema, é natural haver seca em Portugal. Sabemos que estes fenómenos vão ser cada vez mais frequentes e extremos, o que é mais uma razão, como se fosse preciso, para o tema ser tratado seriamente. O verdadeiro problema é o modo como se lida com a seca, sempre de forma reativa e, pior, tardia e esporádica. Há uns anos, em período de seca, um velho e sábio agricultor em Serpa disse-me: “Falta de água? Não. Já sabia que ia ter menos água e adaptei as minhas culturas à água que tenho.” A sabedoria que esta atitude encerra responde, natural e acertadamente, à abordagem a que por aí assistimos. Desde logo, em vez de anteciparmos as medidas, reagimos tarde aos baixos níveis que as barragens vão mostrando. Em ano que chova dentro da média, como no último ano hidrológico, em vez de planear a seca vindoura faz-se o contrário, pensamos e agimos na água como um recurso infinito. Se, entretanto, ocorrer alguma precipitação, o comum utilizador rapidamente esquece a escassez de água. Nada nesta matéria é novo e está sobejamente estudado. Todas as medidas que se possam tomar agora não são estruturais ou até mesmo de gestão sustentada, são de emergência, como se a seca fosse uma contingência rara e inesperada. Com algum arrojo, por esta altura devíamos estar a preparar as cheias que, obviamente, um dia destes também vão chegar.
A água é muito mais que um recurso e tem de ser abordada como tal. É o ecossistema mais rico e o primeiro meio recetor. Sabemos que as situações extremas vão ser cada vez mais comuns, sabemos que temos uma variabilidade climática bastante acentuada, e também sabemos que o recurso hídrico, cada vez mais, não pode ser gerido como um ciclo. Também sabemos que combater a seca com o regadio não é acertado; mesmo que nos atirem o argumento da rega mais eficiente, temos a certeza que a rega eficiente não vai consumir menos água, vai possibilitar apenas regar mais hectares. Sobretudo, sabemos que o uso da água tem de ser criterioso e seletivo – é absurdo ver persistentes filas de automóveis nas boxes de lavagem ou regar relvados urbanos que só servem para cães de donos mal educados.
Neste tempo de online, sem tempo, nem a água resiste à falta de tempo. Estuda-se, planifica-se, mas falta o tempo para implementar, sobretudo para experimentar. Na verdade, as soluções para utilização sustentada da água existem, mas temos um problema gravíssimo e cuja solução implica opções de rotura com as práticas adotadas: somos um planeta sobrelotado em que todos temos a legítima expetativa de dispor de alimentos para viver. Problemas grandes e complexos não têm soluções únicas e simples; sem a assunção séria do problema, a seca fica ainda mais grave. Muito mais que a boa conversa – e nem sempre assim é –, a água necessita de ação, pequenas ações que sejam. Sobejam os planos, as estratégias e os estudos. Do enorme somatório de estudos, planos e estratégias elaborados ao longo de décadas, o que se concretizou e quais foram os resultados? Antes de mais, antes de novos desafios, antes de ação, é imperioso que se faça este balanço, o que se planeou, o que se fez e no que resultou. Só depois disto é que faz sentido desenhar uma agenda. E uma agenda não é mais um estudo ou um plano, é um conjunto de ações objetivas, orçamentadas e calendarizadas que conduzem a um resultado. Um resultado que será certamente melhor e mais sustentável que o presente.
Fica uma pergunta: neste país essencialmente urbano e litoralizado, quanto vale um hectare de terreno com um poço de água potável?
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