A imagem foi usada por um académico britânico, há muitos anos, numa conferência em que participei: a nossa inconsciência face à iminência da catástrofe ambiental assemelha-se à de um homem que se atira de uma janela de um arranha-céus e que, a meio da sua queda fatal, diz para si próprio: “Até aqui, tudo bem.”
Inconsciência do suicida foi não se terem dado, em Glasgow, os passos necessários para travar a marcha para a catástrofe. Em modo Deolinda, os responsáveis políticos reunidos na Escócia disseram-nos: “Vão por nós, que nós vamos lá ter.” Símbolo expressivo do fracasso da conferência foi o pedido de desculpas apresentado pelo seu presidente aos delegados pela substituição de última hora do phasing out pelo mero phasing down em matéria de recurso ao carvão para produção de energia. Falhou o cumprimento do Acordo de Paris na redução de emissões, falhou o mecanismo de financiamento da adaptação, falhou a política de compensação financeira a perdas e danos. Falhou, enfim, a concretização das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, com os principais poluidores a vetar todas as decisões que lhes retirem poder e que tenham custos financeiros e sociais avultados e com o sul global, credor de uma imensa dívida ecológica e de desenvolvimento, a ser uma vez mais condenado a não ter voz e a ficar na primeira linha do desastre.
Eles vão lá ter? O “lá” da pergunta é o que eles recusam. O “lá” é a mudança radical de modos de produção e de consumo, de mobilidade e de arrumação dos territórios. E eles não estão dispostos a chegar a esse “lá”. A sua irresponsável procrastinação é o inferno das gerações vindouras. É o “até aqui, tudo bem” de quem se suicida arrastando todos os outros para a morte.
Foi também um “vão por nós, que nós vamos lá ter” que os bispos portugueses, reunidos em Fátima, na semana passada, nos disseram. Diante da evidência do bloqueamento pesado que impede, durante anos ou mesmo décadas, as vítimas de violência sexual na sua infância e juventude de trazer à superfície e à verbalização o trauma imenso do abuso praticado por quem era suposto ser seu protetor ou confidente, os bispos não quiseram decidir que se faça uma investigação plenamente independente sobre o assunto. A maioria dos bispos – não todos, estou certo – teve medo e mostrou-se incapaz de acompanhar a determinação limpa de Francisco, o bispo de Roma. Quando se exigia um gesto de coragem serena, confiando a investigação do passado de uma cultura de abuso assente numa conceção perversa de sexualidade e de poder a quem não tem quaisquer laços de fidelidade que atuem como limites, os equilíbrios da Conferência Episcopal ditaram a tibieza de um pequeno passo, pequeno demais, que se arrisca a ser pouco mais que burocrático.
Eles vão lá ter? Talvez a imensidão da indignidade do passado os obrigue a ir. Mas, por agora, mostram só estar dispostos a ir às arrecuas, receosos de um conhecimento que destrua a quietude da instituição. À frescura desarmante do amor e do pleno respeito pelos direitos, preferem as cautelas e a defesa da bolha. Fazem-no porque imaginam uma Igreja de exceção num País de exceção, como se fosse possível ter existido essa exceção portuguesa de uma prática alastrada de comportamentos pestilentos e criminosos de membros do clero. A procrastinação dos bispos talvez evite, por agora, demasiada turbulência nas casas episcopais. Mas, no seu evidente defensismo, ela é o inferno dos tantos milhares que foram privados de ser crianças e foram indizivelmente violentados no mais íntimo da sua humanidade.
Diante da inconsciência da catástrofe climática ou do defensismo episcopal face ao crime abjeto do abuso sexual de menores, o que espanta é tanto a procrastinação de quem tem o poder de mudar a História como a sua apologia como expressão de alegada sensatez e moderação. Não há nenhuma sensatez na falta de alcance das medidas aprovadas em Glasgow, nem há nenhuma moderação na falta de vontade de atribuir a investigação sobre abusos sexuais na Igreja a quem não esteja tolhido por quaisquer laços de fidelidade.
Não, desgraçadamente, eles não vão lá ter. Vamos nós.
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