A estratégia de ocupação colonial para implantar a paz liberal perdeu em Cabul. Mais uma vez. Já tinha perdido em Bagdade e em Tripoli. Voltou a perder agora, estrepitosamente. E a questão que se põe é saber se à terceira é de vez. Se quem perde aprende alguma coisa com a derrota. Bem pode Biden anunciar, para consumo interno, que a operação de retirada dos norte-americanos do Afeganistão foi “um sucesso extraordinário”. É um anúncio patético, tão flagrante é a razão da retirada – e essa é a de uma derrota em toda a linha da estratégia de ocupação.
Os colonialismos deste tempo pós-colonial têm como chão o axioma de que há povos que, pelo seu engenho, souberam fazer suas as virtudes do modelo moderno e ocidental de estatalidade e povos mergulhados nas trevas pré-modernas, que os empurram para o caos e para a guerra. A frontalidade colonialista de finais do século XIX contrapunha os “povos civilizados” aos “povos bárbaros”. No século XXI, a hierarquia mantém-se, evitam-se os nomes. Segundo o cânone, cabe aos primeiros – num misto de “missão civilizadora” tipicamente colonial e de autodefesa preventiva – tomar conta dos destinos dos segundos e fazer as operações de engenharia social e institucional necessárias para implantar “a ordem e o progresso” naquelas paragens. Chamam a essas operações state-building, nation-building, institutional-building, capacity-building – tudo rótulos de processos de clonagem da democracia liberal onde ela nunca teve raízes e aparece como um código estranho, trazido de fora para dentro.
O modelo seguido é simples. Primeiro, os exércitos ocupam os territórios e garantem a remoção do poder instalado. A isso chamam asseticamente regime change, invariavelmente legitimado com o matraquear da retórica humanitária, sempre mobilizadora dos melhores sentimentos para branquear jogos de poder. Depois, vem toda a indústria da “ajuda”, com redes de contratação e de subcontratação de empresas, consultores, fazedores de leis, designers de instituições. E todos montam os seus produtos nos territórios ocupados, aplicando standards de procedimentos e de organização replicados em cada sítio com a mesma preocupação pela diversidade com que a McDonald’s diferencia os hambúrgueres de Reiquiavique dos de Tegucigalpa. Pelo meio, organizam-se conferências de doadores, remakes contemporâneos da Conferência de Berlim de 1884-1885, em que as chancelarias de quem manda fixam objetivos – precisos uns, vagos outros, conforme convém – e repartem entre si os custos das ditas “operações”, ou seja o suporte financeiro da dita indústria.
Tudo isto ruiu em Cabul. O liberal Obama enveredou por este caminho para se distanciar do inconsequente bate-e-foge punitivo determinado pelo liberal Bush como retaliação pela explosão do ódio nas Torres Gémeas. Contra os seus apoiantes retroativos de agora, fica evidente – era-o desde o primeiro momento – que ambos estavam errados. Bush, polícia mau, respondeu com a invasão punitiva do Afeganistão à punição bárbara de Manhattan. Ao ódio, respondeu com o ódio, à demonização com a demonização. Não resolveu coisa nenhuma, agravou tudo. Obama, polícia bom, quis transformar o ódio dos outros em seguimento dos modelos dos odiados. Fracassou, porque a democracia não é um Excel, mas uma conquista política querida e sofrida.
Depois de Cabul (e de Bagdade e de Tripoli), muda alguma coisa? Nada é óbvio. A não ser que a crise profunda da hegemonia da paz liberal é expressão da crise profunda da hegemonia da democracia liberal e que faz parte dela. E ambas não têm retorno. Mas só acredita que o fracasso da paz liberal será sucedido pela hegemonia da não intervenção quem ignora que o que move a intervenção não é um código moral, mas uma vontade de controlo de recursos e de acumulação de poder. Depois de Cabul, o intervencionismo internacional não morreu.
(Opinião publicada na VISÃO 1488 de 9 de setembro)
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