Pode ter passado despercebida a muitos (entre a situação do Afeganistão e as notícias da pandemia) a recente atribuição de visto pelo Tribunal de Contas ao concurso de transportes rodoviários da Área Metropolitana de Lisboa (AML). O facto merece, contudo, toda a atenção. Não só pelo valor (cerca de 1,2 mil milhões de euros), pelo acréscimo de oferta de 40% na rede de carreiras (com 600 linhas), para servir uma população de quase 2,9 milhões de pessoas (28% da população nacional), mas sobretudo por constituir um avanço na garantia de transportes públicos de qualidade. Estes autocarros serão mais modernos, com melhor acessibilidade e com muito melhores desempenhos ambientais.
Trata-se de um episódio de uma trilogia que integra também a criação, em 2019, de um passe único metropolitano (com total intermodalidade e um valor bastante acessível) e a exigência de reforço das infraestruturas pesadas de transportes na AML, algumas em vias de concretização com fundos comunitários. O passe único significou uma poupança para muitas famílias de centenas de euros, no que constituiu provavelmente o maior aumento de rendimento líquido nas últimas décadas (e sem acréscimo fiscal).
A substituição do uso de veículos privados pelo de transportes públicos é uma medida determinante para a proteção do ambiente (menos emissões poluentes) e para a gestão das cidades e dos territórios de maior densidade. Bem mais do que a mobilidade elétrica que tem os próprios impactos ambientais e não resolve os problemas dos congestionamentos de circulação e de estacionamento.
É claro que, para muitas faixas da população, os rendimentos não permitem sequer equacionar o uso de um carro diariamente. São utilizadores obrigatórios do transporte público. É preciso garantir-lhes conforto, qualidade e preço baixo.
Outros têm essa opção e é desejável que prefiram também o transporte público. Para que isso aconteça, é preciso ter consciência de que as pessoas tomam decisões racionais. Se têm um custo com transporte público pouco diferente do custo do uso do carro, vão de carro. Se os horários de trabalho não se coadunam com a frequência e os horários dos transportes, vão de carro. Se o conforto e a segurança dos transportes públicos são baixos, provavelmente continuam a ir de carro.
Nenhuma campanha de apelo à utilização de transportes públicos será eficaz se a oferta não for de qualidade. E é necessário diminuir o estatuto do automóvel na sociedade, ainda visto por muitos como um elemento que evidencia uma determinada posição social. Nas novas gerações mais urbanas, há elementos interessantes, como é o facto de hoje (ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com a minha geração) muitos não considerarem prioritário, logo que atingem a maioridade, ter carta de condução e muito menos carro.
O impacto destas medidas não é só no ambiente. São medidas que reduzem as desigualdades entre aqueles que têm de usar transportes públicos de qualidade ainda insuficiente e os que podem optar pela viatura própria; que aumentam o rendimento disponível das famílias; que permitem regular de forma muito mais efetiva o espaço público e começar a sonhar com uma progressiva diminuição do número médio de carros por agregado familiar nas zonas mais urbanas; que garantem igualmente uma melhor atratividade dos territórios para o investimento de empresas, muitas vezes limitados pela escassa rede de transporte público.
Todo este processo, que ocorreu nos últimos quatro anos, teve origem em dois factos fundamentais. Um sólido empenho dos municípios e da AML na melhoria dos transportes, com o financiamento duma parte significativa dos custos e a assunção do risco da operação. E a existência de condições políticas na Assembleia da República e nas negociações dos orçamentos do Estado, capazes de impor soluções de investimento nesta área, até aqui inexistentes.
Esperemos que este processo se consolide o suficiente, designadamente na sua apropriação pelas populações, para que se torne impossível o seu retrocesso!
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