Este fim de semana, depois de mais umas quantas detenções, houve um jornal que se dedicou a revisitar os anos de Sócrates e um alegado “plano” do homem que conseguiu a única maioria do PS, para controlar a Justiça, a comunicação social, os bancos e as grandes empresas.
O plano parece, quase foi, fácil de executar. Mas acusar Sócrates desta inteligência de arquiteto parece-me de uma injustiça extrema para o humilde “engenheiro” dos exames ao domingo.
O que o José e os demais detidos tiveram em comum não foi a vontade ou o desígnio de um animal feroz; foi, sempre e só, a codícia do mesmo leopardo. Todos os demais são personagens queirosianas, sim, mas, como sempre, menores.
O José não pensou em nada, planeou não planear e, em vez disso, ter um objetivo mais simples. Ia mercadejando o que podia, sem grande critério, só o de apanhar a fruta de todas as estações, como escreveu o juiz de que ele gosta. Já o dr. Salgado, até chegar o homem que o travou, fazia o que queria no País em que as ditas elites nunca tiveram de verdade a vocação de elevar o povo, pela prosaica razão de que, mesmo que lhes interessasse, não saberiam como.
Numa crónica deliciosa, publicada em 2017, Rentes de Carvalho compara o José a Eugénio de Rastignac, outro provinciano ambicioso, só que “o personagem de Balzac desunhou-se e humilhou-se até chegar ao banqueiro, mas para José, os deuses aplanaram o caminho, invertendo a ordem das coisas e mandando que fosse o banqueiro a procurá-lo. E que fez o inocente, com o baralho inteiro na mão e podendo dar cartas? Deixou-se tentar pela falácia de uns poucos milhões, quando, fosse ele bom jogador, estaria nas Seychelles a gozar em pleno uma vida de luxo, e o apontaríamos como exemplo à juventude”.
Mas mais do que a circunstância, seja o banqueiro ou o José que mandam, seja o cão que abana a cauda ou a cauda que abana o cão, o que inquieta mais é a repetição do modelo antigo. Tudo se “cria” sempre e só com o amparo do Estado: ou do dinheiro do banco do Estado, ou dos favores do Estado.
Na verdade, tirando o mercadejar vindo tão de cima, que diferença há entre a podridão que deste tempo vamos destapando e a relação entre o Estado novo e o conjunto de “empresários” a que este foi prestimosamente eliminando a concorrência a desfavor do progresso?
Serão o aluguer do País, e em particular do PS, por Salgado e o dito esquema muito diferentes do modelo, da filosofia do condicionamento industrial e da discriminação corporativa de Salazar?
Evidentemente, do ponto de vista político, não há comparação, é sempre preferível a podridão à ditadura. Na podridão, mesmo que nada mude, sempre se pode falar, como ainda fazem meia dúzia de pessoas lúcidas e muitas mais, como eu. Ninguém ouve, nada muda, mas também ninguém vai preso.
É tudo muito melhor assim, claro. Mas neste acorde particular do nosso fado: o Estado a esbanjar sempre muito com os que se lhe encostam ou o encostam, será que de Salazar a Sócrates a vida mudou assim tanto?
Para quem, na classe média, se esmifra a trabalhar e a pagar impostos, este acordar da Justiça para muito do que sempre nos pareceu estranho confirma o desconforto de perceber que, entre a nossa poetisa – “o mal encontra o mal, ambos se entendem, compram e vendem” – e Lampedusa – “é preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma” –, há talvez quanto baste para escrever a aziaga biografia da minha geração. E, suspeito, nada de diferente aconteceu na do meu pai.
(Opinião publicada na VISÃO 1481 de 22 de julho)
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