As detenções mediáticas para interrogatório a que vimos assistindo geram uma satisfação coletiva tão evidente que há comunicação social pronta para viver dessa alegria, mencionando refeições dos detidos, e há políticos que subitamente acham que devem comentar a Justiça. Responder, por causa dos dividendos económicos e políticos, à alegria sentida com tanta detenção espetacular é, parece, sinal dos tempos, pelo que ninguém se atreve a pagar o preço de dizer que os detidos são inocentes não acusados, não julgados, ninguém se atreve a dizer que a presunção de inocência é coisa para valer sempre. Isso não dá audiência nem votos, e cá estamos em muito jornalixo diário e em concursos políticos do a-ver-quem-fez-mais para prender os malandros todos.
Pelo meio, não há alma que prefira o custo da impopularidade que é ser da equipa do Estado de direito, o que passa por querer que a Justiça funcione, claro, mas também por rejeitar com horror a normalização das detenções para interrogatório. Lamento, mas não é normal, após anos e anos de investigação e recolha de prova, deter pessoas durante dias para finalmente as submeter a perguntas. Estar detido é algo absolutamente drástico num Estado de direito. Imaginem-se detidos sem estarem acusados do que quer que seja, com a presunção de inocência intacta. Qual a razão? Nos casos que têm vindo a público de modo tão espetacular, acreditamos que há perigo de fuga ou perigo de destruição de prova depois de tantos anos de investigação? Sabemos de todas as alternativas à detenção e temos esta opção cada vez mais banal por aceitável?
Eu não. E quero entender de onde vem este prazer coletivo perante as notícias inflamadas de uma e outra detenção. Temo que a fraca apologia da democracia e do Estado de direito, aliada aos oportunistas políticos que inventam um País podre e um regime acabado, com respaldo numa certa comunicação social, seja causa forte deste riso horripilante. Cada vez é mais difícil defender o Estado de direito, a presunção de inocência e a recusa de medidas desproporcionais sem que nos acusem de estarmos do lado da corrupção ou de contra a mesma não querermos fazer nada.
Os tempos são assim: parece culpado, é culpado. Assim, se está detido para ser interrogado, que apodreça por ali uns dias. Este horror é justamente a negação da presunção de inocência. É por ser ponto assente que recusamos isto que há julgamento e produção de prova. Não aceitamos, num regime democrático, condenar sem julgar, pelo que devíamos castigar nas urnas quem criminaliza a política, quem usa a Justiça como arma, e devíamos castigar como cidadãos os órgãos de comunicação social que fazem dos direitos das pessoas um ringue de boxe sangrento, um massacre pornográfico; sim, devíamos escolher a decência.
É difícil, mas vale a pena. A Justiça não pode ser um espetáculo ao qual nos rendemos com medo de perdermos o nosso eleitorado. A Justiça não pode ser um espaço sonoro de alívio de frustrações. A Justiça não pode ser arma de quem quer rasgar o regime e desatar o nó que demos em abril. A Justiça é templo de silêncio e de eficácia sem dependência do horário nobre.
(Opinião publicada na VISÃO 1480 de 15 de julho)
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