“Estabilidade sem pântano e proximidade sem deslumbramento, arrogância ou abuso de poder”. Talvez esta ideia, no discurso de Marcelo Rebelo de Sousa, durante sua tomada de posse para um segundo mandato presidencial, e que corresponde à primeira das suas prioridades, como garante do bom funcionamento das instituições, responda às inquietações de Cavaco Silva, expressas recentemente, sobre uma “democracia amordaçada”. O fantasma de Cavaco (que, embora presente na cerimónia do Parlamento, evitou cumprimentar Marcelo…) já tinha estado implícito na intervenção inicial do Presidente da Assembleia da República e segunda figura do Estado, Ferro Rodrigues, quando este falou de “uma democracia sem mordaças”. Marcelo, mais subtil, lembrou que durante o seu primeiro mandato decorreram eleições que, num dos casos, até fizeram aumentar a oposição ao Governo, concluindo: “E isto é democracia”. Assunto arrumado, portanto. Mesmo que Cavaco se tenha referido a dimensões da democracia que não se restringem ao voto: a nomeação de uma nova PGR; o caso do procurador europeu; a substuição do Presidente de Tribunal de Contas (embora, no seu tempo de primeiro-ministro, ele próprio tenha incluindo esta função entre as forças de bloqueio…). A separação de poderes, em suma.
Já o aviso a Costa sobre a ideia de “pântano”, palavra introduzida no léxico político, em 2001, por um primeiro-ministro socialista, António Guterres, tocará algumas susceptibilidades dentro do PS. E não deixa de ser curioso que Marcelo tenha recuperado a expressão, no seu discurso de posse. No entanto, nada, na sua intervenção, aponta para um comportamento diferente no segundo mandato, face à relação institucional com o Governo: “Este ou outro”, enfatizou o Presidente, “com esta ou outra maioria, antes ou depois de eleições autárquicas, legislativas ou europeias, antes ou depois da comemoração dos 50 anos do 25 de abril, em 2024. Sou o mesmo”. A necessidade de reafirmar esse compromisso de constância e lealdade institucional, que desmente as desconfianças de comentadores, analistas e até ex-adversários na campanha presidencial, esteve presente no final do seu discurso, e foi proferida em jeito de conclusão: “Foi assim e assim será”.
“Bazuca” europeia aplicada com transparência está entre as prioridades do mandato, avisa Marcelo
No discurso, Marcelo apresentou cinco prioridades, que, traduzidas por miúdos e poucas palavras, se podem resumir no seguinte: primeira, a establidade e a qualidade da democracia e das relações institucionais. Segunda, o acompanhamento ativo na luta contra a pandemia e pelo desconfinamento – exigiu ao Governo que se amplie a vacinação, a testagem e o rastreio. Terceira, a recuperação económica dos próximos anos, mas também a recuperação da saúde mental e dos laços sociais. Nesse âmbito, novo aviso ao primeiro-ministro, mediante a exortação a uma aplicação da bazuca europeia com “clareza estratégica, transparência e eficácia”. Quarta, a coesão social, lembrando a necessidade de políticas que corrijam o que a liberdade, o mercado e a concorrência não corrigem. Quinta, a plataforma entre culturas e o papel de Portugal no mundo (com uma alusão à “desejável” reeleição de António Guterres como secretário-geral da ONU). É todo um programa, num discurso muito marcado pela pandemia, e apresentado depois de um resumo salomónico dos sucessos e insucessos dos últimos anos: a importância da continuidade do rigor das contas públicas, iniciada com o Governo de Passos Coelho e prosseguida sem mudança de rumo; o prestígio consubstanciado em êxitos internacionais políticos (ONU, Organização Internacional das Migrações, Eurogrupo), culturais, científicos e desportivos; mas também a chamada de atenção para o adiamento de “mudanças necessárias” em setores como o SNS, os investimentos e reformas e, “em parte, na Justiça”. O recado ficou dado, António Costa terá tomado nota do caderno de encargos.
Um pouco obcecado pelos perigos dos popuismos – de que fala dia sim, dia não, em quase todas as suas intervenções públicas, como quem está desejoso de espantar as moscas… – Ferro Rodrigues acabou por fazer a primeira parte de um “concerto” presidencial em que não faltou o tema da xenofobia – ar dos tempos! – e o alerta contra o conceito de “casta”, ou do “português puro”. Pavlovianamente, o deputado André Ventura, ex-candidato presidencial, enfiou a carapuça, falando de, “mais uma vez, ataques ao Chega” – sem que alguém, em qualquer dos discursos do dia, se tenha referido ao Chega ou pronunciado o nome do seu partido… Mas isto não passou de um aspeto anedótico de uma manhã de posse confinada que mostrou um Presidente com mais com que se preocupar.