A normalização do “vai para a tua terra” aconteceu.
Um deputado disse-o a uma deputada negra e a indignação não foi geral.
Por estes tempos, circula uma petição com milhares de assinaturas exigindo a “deportação” do cidadão Mamadou Ba.
Perante este horror, são muitas as vozes que perdem tempo exclusivamente a alimentar o ódio contra Mamadou Ba. A opinião que o mesmo profere, a qual, de resto, muitas vezes não acompanho, não é alvo de crítica. É, antes, alvo de ódio e quem lhe tem ódio não tem, evidentemente, qualquer amor aos valores da cidade, algo que faça parar tudo, um soluço interior que, pelo menos em mim, congela o debate para me colocar do lado da trincheira antirracista.
Perante este horror, são muitas as vozes que perdem tempo exclusivamente a explicar que “deportar” Mamadou Ba não faz sentido “porque ele é português”. Perdão? E se não fosse? Estamos no grau zero da interiorização do racismo luso, porque a questão é mesmo a de o cidadão em causa ser negro, porque se Joacine Katar Moreira e Mamadou Ba fossem suecos nunca ouviriam de ninguém “vai para a tua terra”, nunca circularia qualquer petição a exigir uma “deportação”.
É evidente que ninguém cometeu crime algum, é evidente que muitas das opiniões que enervam quem nunca se enerva com o racismo são partilhadas por pessoas não racializadas que escapam ao ódio, pelo que o estado das coisas é o da normalização do “vai para a tua terra”, o da normalização do racismo que sempre aqui esteve e que agora encontra conforto para ser explícito, cobarde e acarinhado por quem cala e por quem se diz não racista, enquanto teoriza do alto do seu privilégio acerca, por exemplo, da mudez de Mamadou Ba acerca dos problemas “em África”. Sim, há quem se diga não racista e se arrogue do direito de definir o exercício da cidadania de gente negra. Assim, se um ativista negro faz ativismo em Portugal, ele não tem o direito de questionar Portugal, não, ele que fale lá de África, pois claro, ele que fale do Senegal, onde nasceu, assim como Joacine Katar Moreira bem poderia falar da Guiné, não é? Pois, o mesmo é dizer “eles que vão para a terra deles”.
É insuportável. Uma pessoa verdadeiramente ciente do que é o racismo, ciente da herança que temos, ciente da ameaça nos dias que correm aos valores da igualdade, sabe que ser uma pessoa racializada é ter o corpo e a vida muito mais em risco do que eu. O racismo está cheio de voz. No dia em que escrevo, soube-se dos ataques racistas e neonazis que interromperam uma sessão organizada pela Associação de Estudantes do Liceu Camões. Os estudantes debatiam a escravatura e o racismo. Sabem o que se ouviu no ecrã zoom?
Muitas coisas.
Isto também:
− “Preto, volta para África.”
(Opinião publicada na VISÃO 1460 de 25 de fevereiro)