Quando Donald Trump foi eleito, em 2016, muitos se perguntaram se o edifício demoliberal americano resistiria a quatro anos de ataques e tentativas de subversão por parte do próprio Presidente. Estive sempre do lado dos que acreditaram que assim seria. Escrevi então que “a democracia americana é adulta e institucionalizada. Edificada no século XVIII para reinventar a experiência ateniense sob forma representativa, nasceu fortemente influenciada pelo pensamento político liberal, consagrou direitos fundamentais e fez da separação de poderes a sua trincheira contra a tirania. Tem – já o provou várias vezes – instituições e cultura política suficientemente sólidas para lidar com situações extremas. Inclusivamente com a destituição de presidentes que ameacem o funcionamento do edifício demoliberal”.
Quatro anos passados, apesar do esforço de colonização do Supremo com juízes conservadores, apesar da instrumentalização do Departamento de Justiça, apesar da transformação do Senado e do Partido Republicano em caixas-de-ressonância do (ainda) Presidente, apesar dos esforços para desacreditar os média (que lamentavelmente cederam à tentação de entrar no jogo político), dir-se-ia que, no essencial, tive razão. Trump foi derrotado em eleições democráticas e livres e, com mais ou menos espernear, acabará apeado do poder.
Infelizmente, julgo que o veredito não é assim tão linear. Errei, pelo menos parcialmente, na minha análise. E errei porque pensei então sobretudo nas instituições formais e no edifício constitucional que, repito, no essencial e apesar de todos os ataques, continuam de pé. Mas a democracia liberal é muito mais do que isso. Arrisco mesmo a dizer que os seus pilares fundamentais são mesmo os seus pilares imateriais. A urbanidade, a decência, a moderação mínima, o respeito pela ideia da verdade, o respeito pelas regras não escritas (por exemplo, da transição pacífica de poderes) estão longe de ser pormenores. São o cimento cultural e social que mantém de pé o grande edifício demoliberal e são os grandes garantes da sua sustentabilidade. Ora, é difícil sustentar que não se criaram fissuras brutais nestes fundamentos imateriais da democracia. A verdade é que se normalizou o insulto, a grosseria, o desrespeito institucional, a desvalorização dos factos, do respeito pelos rituais e pelos costumes democráticos mais básicos (vale a pena ouvir o discurso de derrota de John McCain, assim como vale a pena ouvir o elogio fúnebre que lhe dirigiu Barack Obama para que se perceba a dimensão do abismo que se abriu). E a verdade é que não será fácil reconstruir este legado secular. Precisamente porque não está cristalizado em códigos, porque não depende de decretos ou de emendas constitucionais. Foi-se sedimentando ao longo de gerações, sem um guião fixo ou predeterminado.
A par da humildade e da capacidade de escutar os anseios (muitos deles legítimos) dos quase 70 milhões de americanos que ainda escolheram votar em Donald Trump, este será um dos maiores desafios de Joe Biden. Posso estar, uma vez mais, enganado. Mas estou otimista. Não descuro a enormidade da tarefa, mas julgo que o Presidente eleito será uma agradável surpresa. Mais do que carisma, mais do que excelência retórica, mais do que o ímpeto da juventude, a tarefa reclama uma liderança decente, sensata e empática.
(Opinião publicada na VISÃO 1446 de 19 de novembro)