548 milhões de deprimidos e ansiosos, muito mal contados e pré-coronavírus. Ao contrário dos assintomáticos da Covid-19, não é a lentidão de um teste que impede melhor contabilidade, mas o estigma, o preconceito, a vergonha individual, social e institucional. A assintomatologia social, porque não há ossos partidos, feridas purulentas ou sequer um espirro, custava anualmente um trilião de dólares em quebras de produtividade e perto de um milhão de suicídios. Agora que se tornou mediático o susto perante a falta de saúde mental, indigna-me, a cada mesa-redonda de especialistas encartados, a falta de empatia e capacidade de descer à dor real, tremenda e avassaladora que foi a minha rotina por década e meia. É essencial dar às pessoas um “porquê” – eu? esta dor? – que nomeie a doença e anule a culpa; um “como” – um caminho para a cura, que é uma fórmula pouco mágica e combinada, exclusiva para cada caso -; e um “quando” – por favor, quando é que isto acaba. E ninguém dá. Apenas um quarto dos doentes com perturbações mentais recebe tratamento – só 10% recebe tratamento tido por adequado.
A depressão, quase sempre acompanhada do seu contrário, que é a ansiedade, é a doença não contagiosa mais contagiante do mundo. Sejam mal-vindos à pandemia avassaladora que se instala há duas décadas e piorará na próxima. E face a esta, o coronavírus será a lebre da corrida.
Viver com uma depressão é semelhante ao vazio das nossas ruas no Estado de Emergência, sem que se entenda quem decretou o confinamento obrigatório no pior sítio de todos: a nossa cabeça. Um vazio de esperança, de força anímica, uma dormência que não é dos sentidos, não é a falta do olfato ou do paladar, mas do sentir. É uma experiência extra-corpo, porque isto é(ra) o que eu sinto, mas não é(ra) o que eu sei – e a consciência deste desfasamento entre o que se sente e a realidade é de levar à loucura. Junte-se a ansiedade, e parecemos um hamster frenético a olhar para a roda que tem de ir fazer rodar, mas não se consegue mexer. Para quem vive (n)isto, andar de máscara, no teatro social do “está-tudo-bem”, é rotina há muito tempo. Está na hora de desmascarar e fazer um diagnóstico verdadeiro desta que é a principal causa de incapacidade no mundo, neste que é o segundo país com maior prevalência de doenças psiquiátricas da Europa. A única vacina contra a depressão é dizê-la e curá-la às claras. Será que precisamos todos de uma pica na língua para desbloquear o preconceito?
Se está doente ou se sente sintomático, saiba que somos muitos – e há nisto mais que mero conforto. Somos, na exclusividade dos nossos trauma, circunstâncias, cérebros, experiências e neurotransmissores deficitários, muito iguais, e isso permite partilhar estratégias de cura – eu consegui, conseguimos todos. Se tem por perto alguém deprimido ou ansioso e acha que na invisibilidade da doença há capricho, procrastinação ou falta de vontade, disponha-se a entender a voragem incapacitante da dor. Se é psiquiatra ou psicólogo, entenda que o seu papel é gerar empatia em mentes desesperançadas, que os medicamentos não são pílulas mágicas perpétuas e explique-nos absurdamente tudo: o diagnóstico, o nome, porquê, como, quando.
A depressão e suas semelhantes não se pegam por gotículas, mas as suas consequências contagiam a vida de todos. Desde o deprimido que deixa de saber viver, aos que partilham a vida com um deprimido e, assintomáticos, vêm a doença manipular-lhes o quotidiano, com perdas trilionárias para a economia. É preciso um exército para combater a pandemia das perturbações mentais. Cada um é general da sua guerra pessoal, mas sem aliança social não há cura. Sem investimento e políticas públicas de saúde mental exponenciais e uma classe de especialistas que parem de nos vender como objectiva a mais subjectiva de todas as doenças, governo, empresas, médicos e cada um de nós será bala ou comprimido assistente do suícido.
548 milhões de deprimidos e ansiosos, antes do coronavírus. Com um número galopante de pessoas a apresentar sintomas – que ainda não são doença mas quase -,com o gatilho do desespero económico a disparar em todas as mentes, com a incerteza e o medo reinantes, quantos acham que serão no final deste ano maldito?