O excelente escritor brasileiro Rubem Alves (não, não falo ainda do homónimo Fonseca – já lá irei) escreveu sobre avestruzes para falar dos esquecimentos intencionais. Quando sob ameaça – encurraladas por um leão, imaginemos –, as avestruzes enterram a cabeça na areia. Não vendo o perigo, fogem ao sofrimento de assistirem à própria morte, ou à de uma companheira, às garras do leão.
Rubem Alves partiu há seis anos e eu fiquei triste. Ficamos tristes de cada vez que morre um escritor que admiramos. Justifica a nossa tristeza a gratidão que sentimos pelo facto de esse autor ter escrito este e aquele livros de que tanto gostamos, por vezes também a admiração pelas intervenções públicas que fez, ou então simplesmente pelo charme próprio que a imagem dos grandes escritores emana.
Vem este introito a propósito dos grandes escritores Rubem Fonseca e Luis Sepúlveda, autores que muito admiro, e cujas mortes nos entristecem as horas mais recentes destas semanas já tão penosas e sombrias. E emprego o presente quando conjugo o verbo admirar porque a morte de um escritor entristece-nos apesar de todos sabermos que os escritores morrem menos. Não morrem com menos frequência do que todas as outras pessoas, claro está; todos os escritores morrem tanto como os enfermeiros, os pescadores, ou os contabilistas. Mas é facto também que a morte de que morrem, sendo igual na sua natureza, isto é, sendo provocada por enfarte, cancro, acidente de viação ou por um vírus malfazejo, não o é na sua efetividade. O escritor, tal como outros criadores e artistas, e dizê-lo é pouco mais do vogar no senso comum, mas concedam-me isso, o escritor continua vivo na obra que deixa. E alguns deles, sendo Fernando Pessoa o melhor exemplo, estão até mais vivos depois de terem morrido.

De Rubem Fonseca, e olho-as agora, guardo preciosamente as douradas edições da Sextante – todas sublinhadas e rabiscadas, sobretudo o monumental “A Grande Arte” – e as da Campo das Letras, como uma de “Ela e Outras Mulheres”. Só estive com ele uma vez, no ano de 2012, no Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, e lembro-me da sua maravilhosa intervenção peripatética, ou de eu me ter oferecido para lhe ir comprar uma caixa de Periquita (quem conhece a sua obra percebe porquê). De Sepúlveda, para além dos livros, que são o melhor de tudo, guardo também duas fotografias bonitas: uma, de 2015, na primeira sessão da “Viagem Literária”, em Bragança, que teve mais de 400 pessoas na assistência, e na qual Sepúlveda, ao lado de Valter Hugo Mãe, aponta uma caneta à lente como quem empunha uma arma; a outra, do ano seguinte, quando lhe dedicámos uma sessão do “Porto de Encontro” na Casa da Música, no Porto, e que contou com 1000 pessoas a assistirem, mostra-nos à mesa de um dos melhores restaurantes da cidade e foi tirada pela minha colega e amiga Maria João Machado, para registar a felicidade do Lucho por estar a provar a mítica Salada de Pêssegos – merece maiúsculas – da Casa Nanda. Ainda sei que vinho bebemos nessa noite – não foi Periquita, Zé Rubem, desculpa – e não esqueço as descrições que, entre outras histórias, o grande viajante chileno nos fez, a mim e à Maria João, de muitas dos milhares de espécies de batatas – das que são do tamanho de ervilhas às que picam como malaguetas – existentes no Peru.
Bem sei que estas memórias vão ficar e que muitas pessoas guardarão outras igualmente boas ou até melhores ligadas a estes escritores e aos seus livros. Mas as recordações não são nunca consolo suficiente. Bem sei também que os livros (que mesmo sendo de ficção são a verdadeira vida dos escritores) vão ficar – li até alguém muito recentemente, linhas atrás, defender que os escritores morrem menos. Bem sei, bem sei. Mas não queria – não queríamos – que eles morressem, ponto. O problema, como lembra Rubem Alves, é que o leão existe, mesmo quando enterramos a cabeça na areia ou fechamos os olhos. Bem sei, bem sei. Mas, hoje, ainda assim, com notícias destas, queríamos ser todos um bocadinho avestruzes e não ver as coisas tristes.