Tenho-me perguntado várias vezes qual deve ser o papel de um comentador, de um jornalista, de um analista, de uma qualquer voz no espaço público, em tempos sombrios como os que atravessamos. É para mim claro que não ficam nem podem ficar suspensos, nem o nosso direito, nem sequer o nosso dever de escrutínio em relação aos poderes políticos. Parece-me aliás que isso deve ser particularmente verdade durante a vigência de um estado de emergência que confere ao executivo poderes extraordinários em democracia. O silêncio não é definitivamente opção. A suspensão da crítica também não o pode ser.
Isto dito, parece-me não menos cristalino que os tempos recomendam uma atitude diferente. Esta crise vai testar-nos até ao limite. Antes de mais, e acima de tudo, pelas mortes dos que nos são próximos. Depois pelos efeitos de um confinamento exigente e muito prolongado. Já não seria fácil manter um país inteiro fechado entre quatro paredes durante oito ou dez semanas. Será ainda mais difícil se a esta primeira vaga pandémica se seguir uma segunda e se a um breve afrouxar das medidas de mitigação e de contenção se seguir uma reposição das restrições, empurrando a nossa libertação coletiva bem para lá de Junho.
A tudo isto acresce que, porque nenhum país, nenhum governo, nenhum sistema de saúde do mundo está verdadeiramente preparado para o que aí vem, vão inevitavelmente ser cometidos erros. Alguns deles compreensíveis e toleráveis num contexto de absoluta novidade. Foi assim na China como foi assim em Itália. Está a ser assim nos EUA, no Reino Unido, até em França e na Alemanha. Mas a nossa capacidade para os tolerar ou sequer compreender, vai obviamente diminuir à medida que se somam mortes, infetados e semanas de provação. Com uma facilidade que agora parece difícil de conceber, passaremos, se nada fizermos, de um ambiente de civismo, de compreensão e até de solidariedade para tempos de recriminações, culpados, ressentimentos. Até porque haverá sempre quem os fomente, haverá sempre quem, em nome de particularíssimas agendas políticas ou outras, tenha interesse em cultivá-los. O perigo do desagregar azedo da nossa comunidade é real. Sempre foi assim, aliás, com o medo.
Retomo, pois, o fio à meada. Julgo que o nosso dever de vigilância e escrutínio dos vários poderes em tempos de sombras não é incompatível com a observação de duas regras muito simples. A primeira consiste em refrear a nossa tendência coletiva para o bota abaixo gratuito que continua a ser, em larga medida, a marca maior das redes sociais. A vigilância e a crítica, fundamentais em democracia, ganham em autoridade e em eficácia se forem guardadas para o essencial. A crítica séria não se pode confundir com o alívio azedo das ansiedades que todos legitimamente sentimos. A primeira é para o espaço público. O segundo é para o divã da psicanálise.
A segunda regra está relacionada com o tom. Pode-se ser contundente sem se ser incendiário. Pode-se ser intransigente sem se ser gratuito. Pode-se ser corajoso sem se ser populista. Os tempos não autorizam silêncios acríticos, mas reclamam muito civismo.
Sobre cada um de nós, analistas, jornalistas, políticos, mas também demais cidadãos, impende, pois, um duplo dever. O de não permitir que a democracia efetivamente se suspenda, o de resistir a quem, em nome do medo e da urgência do momento, quiser sugerir unanimismos acríticos. Mas também o de preservar os laços de civismo e urbanidade que mantêm de pé a casa comum em que vivemos.
Tudo isto é mais frágil do que parece e a provação só agora começou.
(Opinião publicada na VISÃO 1412 de 26 de março)