A Câmara Municipal de Lisboa veio propagandear a intenção de fechar a totalidade da Baixa à circulação viária. A proposta é absurda, mas na verdade só fomos defendidos da loucura pelo vereador João Pedro Costa, que é cada vez mais o último representante de um módico de bom senso na política da capital.
A transformação radical da Baixa de Lisboa unilateralmente anunciada é assunto demasiado sério para ser assim decidido contra as pessoas só porque o presidente em funções se aborrece ou precisa de dar nas vistas.
Para começar, o executivo municipal não tem qualquer mandato para esta proposta radical. O Programa Eleitoral do PS apresentado aos lisboetas, à parte a maior limitação do estacionamento, não anunciava nada disto. O fecho da Baixa nunca foi prometido. E se tivesse sido, teria tido debate e combate.
O que o PS prometeu foi a oferta pública de seis mil apartamentos para arrendar com valores abaixo do preço de mercado. E é o que se vê: de seis mil casas prometidas, Fernando Medina e o PS apenas conseguiram arranjar no papel 120, e com chave na mão, prontas a habitar, apenas 20. Mas o PS prometia, igualmente, em outdoors a abertura de 14 novos centros de saúde. E aqui também é o que (não) se vê: até agora não abriu nem um.
Sejamos claros: Lisboa não pode ser gerida por um sentimento de deslumbramento com a pseudomodernidade. Uma parte vital de Lisboa, como a Baixa, não pode ser apenas uma coutada especial para turistas. Porque, por muito importante que a atividade turística seja – e o turismo é essencial para Lisboa e para o País –, o facto é que a cidade histórica não pode ser apenas uma aldeia Potemkin.
As pessoas reais que vivem e que trabalham em Lisboa não são apenas as pessoas que orbitam numa bolha de conforto trendy a quem nada incomoda. Lisboa são as pessoas que cá estão. E essas são muito mais do que os figurantes da Monocle. Vamos lá atentar ao que de facto está em causa, isso mesmo, as pessoas. Será tentador procurar caricaturar todos aqueles que se oporão a esta intenção unilateral de encerramento da Baixa à circulação viária, como a reação dos amigos dos carros contra as pessoas. Mas esse é um simplismo absurdo: nem o centro e a direita são amigos dos carros contra as pessoas, nem a esquerda é o seu contrário.
Existem evidentemente fortes argumentos para limitar algum do trânsito na Baixa-Chiado. Mas não podemos começar a casa pelo telhado: deplorar a gentrificação ou a perda de população da cidade, ou a desertificação do seu centro histórico no altar do turismo, são apenas lágrimas de crocodilo inconsequentes quando o funcionamento dos transportes públicos é aquilo que sabemos, quando se opta por construir uma linha circular de metropolitano servindo as zonas mais afluentes, desprezando toda a área ocidental e as zonas mais pobres da cidade.
Há cinco anos, António Costa proibiu os carros velhos dos mais pobres, anteriores ao ano de 2000, de circular na Avenida da Liberdade. Ficou reservada para os Mercedes dos ministros e fechada aos Renaults Twingos dos reformados, mas a poluição só se agravou. Agora, quem quiser viver ou trabalhar no centro histórico terá de comprar um carro elétrico ou um Porsche Cayenne híbrido de novo modelo. É o novo classismo ambiental: os ricos e os navios de cruzeiro podem poluir (a poluição dos navios em Portugal é tanta como as oito cidades com mais carros, de acordo com um estudo divulgado no ano passado) – mas a simples administrativa com um Opel Corsa de 2006 já não pode.
Mas o cúmulo é quando um presidente de câmara se acha no legítimo direito de estabelecer um número limite de visitas que os cidadãos moradores na Baixa passam a poder receber na sua própria casa! Parece uma distopia longínqua mas não é: o dr. Fernando Medina acha plausível que os moradores passem a ter de avisar previamente as visitas que irão receber, indicando a matrícula do respetivo veículo, através de uma app a criar para o efeito! Mas ainda, magnânimo, permite aos cuidadores de pessoas debilitadas ou acamadas, ou de crianças, que entrem numa parte de Lisboa sem autorização prévia, mas apenas podendo estacionar nos parques de estacionamento, devendo ter o respetivo dístico.
Parece que os táxis poderão circular enquanto os Uber terão de ser elétricos. Ignora-se como será na situação de canalizadores, eletricistas ou pintores de interiores.
Mas uma coisa é certa: já não estamos a falar de Lisboa. Estamos a falar de um delírio.
(Opinião publicada na VISÃO 1406 de 13 de fevereiro)