Era madrugada. O vento, soprando em força na horizontal, esgueirava-se por entre os fios elétricos e telefónicos assobiando a intempérie. Preocupado, porque havia viagem na manhã seguinte, levantei-me da cama quente, fui à janela gelada e espreitei o extenso canal de Nemésio. Mau tempo, e o Pico ali tão perto e tão longe, esse penedo preto erguido sobre a planura das água confiadamente emergindo, desafiador, gritando: “Sou o mais alto de Portugal.”
A lancha Espalamaca, abarrotando de história marítima, construída em madeira e escondendo um fundo de pouca quilha, com dois motores Greys de 200 cavalos de potência cada um, atrevia-se, atirava-se, aproava e divergia, estalava e roncava, galgava e descia, furava e avançava, como um cachorro inquieto, que, atrevido, investe contra as mortais presas de um cão de fila.
O poder do mar entre ilhas não era temido pelo mestre piloto, um marinheiro já experimentado, havia décadas, nas lides do cabo das tormentas açoriano, o tumultuoso canal entre as ilhas do Faial e do Pico, que fez os deleites literários do terceirense Vitorino Nemésio. O mestre perdera a conta do número de bebés nascidos na lancha. A Espalamaca fora seu berço. Eram filhos do mar ocidental e dele, comandante de uma lancha e de vidas, levando-os e às suas mães a portos seguros; era um herói tal que, a pedido das progenitoras felizes, apadrinhava os recém-chegados às águas do canal, oferecendo-lhes o seu próprio nome.
O número de anos nunca fora suficiente para contar doentes que lhe passaram pelo convés, com os menos afortunados a morreram-lhe nas mãos das enfermeiras que os acompanhavam, porque o mar açoriano, sobretudo na invernia, é um muro entre ilhas que exige vidas.
Trabalhava-se na ilha em frente, do outro lado do canal. Havia, por isso, que ignorar meteorologias e transportar diariamente picoenses aos empregos no Faial e faialenses aos trabalhos no Pico. A Espalamaca era uma camioneta de águas sem descanso.
Observar o porto, dentro da baía, era enxergar uma lagoa calma, pacífica e espelhada, augurando boas travessias. Nada mais errado. O maroto, termo usado nas ilhas açorianas do centro para delicadamente encobrir as maldades do mar, escondia, para além da barra, vagas inconstantes e inestéticas, medonhas e temerosas.
Entrei na casca de noz com a minha filha de três jovens anos. Começava ali um calvário que se prolongaria por duas crucificadas horas, em vez dos habituais trinta minutos de viagem, desde o porto da Horta, no Faial, aos ilhéus da Madalena, no Pico.
A lancha, já sulcando mar alto, quase sufocava, engolida por mar que a abafava e parecia que se partia ao meio por força da violência incontida dos vagalhões que se quebravam impetuosamente sobre a sua perturbante fragilidade. E o casco contorcia-se, rangia, gemia, enquanto os nossos sentidos ouviam o choro da embarcação, por tamanha sova salgada.
Alexandra, a minha bebé, solidarizava-se com a Espalamaca e com ela chorava. “Papá, quero fazer chichi.” E lá ia eu com ela aos trambolhões à casa de banho, tropeçando em pés que se entrecruzavam, escorregando em vomitados e caindo com ela para cima de passageiros sentados em desconfortáveis bancos de madeira. E os companheiros do infortúnio ainda iam buscar forças, não sei aonde, para acariciarem a bebé. Um deles exteriorizou: “Querida filha, se escaparmos desta, estás batizada!”
Quando avistámos os ilhéus prometedores da Madalena, quais sentinelas da altaneira ilha, surpreendentemente, um dos dois motores avariou. O contrário é que não seria de esperar, tal era o esforço despendido por ambas as máquinas. E ficámos a navegar apenas com um motor, o de bombordo, que, para nossa sorte, se manteve fiável, trepando densas massas de água que vinham ao encontro da embarcação, e, da frente e de través, se uniam no alto, como para se fortalecerem, obrigando a casca de nós a mergulhar em vales abismais e inóspitos, para depois trepar a imensidão. E as almas, ensanduichadas lá dentro, nessa inesquecível romaria de terror, sussurravam rezas em tons menores para não despertarem ainda mais a ira do monstro marinho que se aninhara nas águas. As lamúrias eram cortadas apenas pelos gritos aflitos da bebé Alexandra e pelo rosnar bruto das águas em loucura total. Quis o canal de Nemésio que aquilo acabasse em bem. Entrámos no Porto da Madalena como soldados esfalfados, acabados de escapar da Normandia. Quase nos beliscávamos para termos a certeza de que estávamos em terra.
Escrevo-vos hoje estas linhas precisamente aqui do Pico, por onde passo em visita relâmpago, ilha presentemente modernizada e procurada pelo turismo de todo o mundo, onde pontificam os corpulentos ferries da companhia marítima açoriana Atlanticoline, que, num vai-e-vem, trazem e levam. Viajei ontem num deles e, embora o mau tempo se fizesse sentir, quase não nos apercebemos da mareação. Não mais a Espalamaca nas travessias do canal.
Amanhã, dia do adeus à ilha montanha, com tempo livre até às quatro da tarde, hora de regresso em avião da SATA, deixo o hotel cedo para ir à procura da menina do canal, a velha Espalamaca que, justamente, por força de picarotos carolas e teimosos, e com o apoio do Governo Regional dos Açores, está a ser alvo de restauro na perspetiva de poder voltar a navegar. A lancha não pode morrer, porque serviu e salvou milhares de vidas, resistindo bravamente ao furor do Atlântico Norte. Navegou nas mãos de Mário, de apelido Botas, de José Carvalho, de Feijó, de José Medeiros, de Manuel Humberto. Conheceu o carismático Gilberto Mariano, um castiço do canal, que ajudava nas amarrações do barco ao cais e fazia de transitário acartando a carga numa pequena carrocinha. Hoje, Gilberto Mariano tem uma estátua no cais da Madalena e emprestou o seu nome a um dos grandes ferries da Atanticoline.
Desta vez, dezenas de anos depois daquela viagem tormentosa de travessia entre o Faial e o Pico com a minha filha Alexandra, irei visitar a velha Espalamaca que heroicamente nos levara a bom porto. Encontra-se no cais de Santo Amaro, onde está a ser reabilitada para futuros passeios turísticos à volta da ilha montanha. Sou-lhe eternamente grato por nos ter protegido naquele dia memorável. Obrigado, Espalamaca.