O dia de hoje foi todo ao virar da esquina. De manhã fomos ver Inês Faustino, Josefina Marau e Jacinta Gonçalves darem formação aos animadores Helpo. Aconteceu numa sala da Biblioteca Provincial, onde a ONG apoia a ludoteca. A biblioteca tem o nome e a fotografia de Marcelino dos Santos, poeta e fundador da FRELIMO, que lembra Mr. Miyagi, do filme Karate Kid.
Os animadores são professores que identificam as necessidades dos alunos, canalizam apoios e os ajudam a escrever as cartas aos padrinhos. Neste grupo encontrámos “velhos” conhecidos, como Sebastião, o motard das areias, e Hortênsio, o simpático animador de Teacane. De Josefina já falámos noutro dia, mas é preciso dizer que faz um salame improvisado de Nesquik que põe muitos doceiros num chinelo. Quanto a Jacinta Gonçalves é uma designer reformada que está a meio do seu voluntariado de dois anos. Como qualquer voluntário, Jacinta é pau para toda a obra e para tudo o que sobra, dá formação de práticas pedagógicas, estimula as crianças do infantário com jogos e leituras, organiza o material didático, vai a aulas de kizomba e dá show nas pistas de dança.
Ao almoço, Zeferino, o cozinheiro da casa, fez Matapa de Camarão, um prato típico moçambicano que leva leite de coco, amendoim e a verdura mais à mão, folha de mandioca, folha de abóbora, folhas da árvore moringa ou couve. A mulher do chef também trabalha na casa e a filha mais nova de ambos fez hoje um ano de idade. Carinho não é algo que os moçambicanos troquem muito em público, como se pode ver pela fotografia do casal. Quando perguntámos a Zeferino se sabia o que a filha mais velha queria ser quando fosse crescida, respondeu-nos que não, isso são perguntas para a Helpo.
À tarde virámos outra esquina em Nampula e fomos visitar o Infantário Provincial. Adelina Pascoal, ex-freira, e diretora recebeu-nos. Atualmente este orfanato tem cerca de trinta crianças, mas com capacidade para cinquenta. Enquanto falámos com algumas delas, Elvis, um bebé que foi tirado à mãe alcoólica quando tinha 2 anos e 3 quilos, estava a acordar no seu berço, atento ao que o rodeava.
Salomão faz 3 anos em março e faria também um belo presidente. Por enquanto quer ser doutor para poder ter “carro, moto e pialeta (bicicleta)”, gosta de ver os desenhos animados Super Wings na casa da diretora e tem medo da chuva. O pai de Salomão foi um grande caçador e ele parece ter herdado esses genes, porque não tem medo de agarrar tudo o que é bicho. O Salomão ajudou o João, uma criança da mesma idade, a começar a falar. A certa altura, com incentivo da diretora, João e Salomão cantaram o hino nacional moçambicano ao meu colo.
Abdul, apadrinhado da Helpo com 21 anos de idade, tem uma história cheia de peripécias. Está quase a começar a trabalhar como serralheiro mecânico na empresa Coscam e tudo se endireitou na sua vida. Para trás ficam uma infância e adolescência atribuladas, com direito a dois meses de vida na rua. Nessa altura Abdul lavou carros para poder comer, mas levou muitas tareias. A diferença entre ter morrido e estar vivo é simples. Alguns delinquentes queimavam os sem-abrigo que ostentavam um símbolo exterior de riqueza chamado saco-cama.
Os que só tinham cartões e cobertores eram poupados. De uma só vez 30 miúdos da rua foram apanhados pela polícia e vieram parar ao orfanato. Vinte e nove fugiram pouco tempo depois e só Abdul ficou. Nessa altura aprendeu que podia ter ajuda para estudar, mas isso pagava-se com bom comportamento. Estará aqui outro futuro presidente? Um passo de cada vez, tal como fez e faz a diretora Adelina. Em adolescente queria ser irmã, mas caso tal não fosse possível, dizia “vou fazer um quintal e cuidar de crianças”. Quando há cerca de um ano, decidiu fazer o mestrado, o marido saiu de casa, deixando Adelina com duas filhas mais trinta. Apesar de tudo, a mamã de todas as crianças mantém-se muito positiva. “Eu fui muito ajudada. Passei pelas mãos de pessoas que eu não conheço. A única maneira de demonstrar reconhecimento, é fazer o mesmo.” Salomão entretanto apanhou um gafanhoto que serve para meter medo a João e Elvis começa a entoar uma canção.
À noite, vimos muitas esquinas vazias, perto da casa Helpo ou mais à frente, no bairro do Matadouro. As únicas figuras a habitarem as sombras e contraluzes eram os guardas das lojas, os figurinos de montras e os sem-abrigo, uma miscelânea de seres a tentar dormir, a tentar acordar.