Freetown, para além do nome que mexe com o meu imaginário, nasceu da libertação de opressões. Foram os escravos negros, libertados por Inglaterra, Canadá e Jamaica que a ocuparam pela primeira vez em 1787. É a capital da Serra Leoa. Quando lá chegamos, não é só o nome e a história que são inspiradores. São as estradas com bancas coloridas que acompanham os “Ss” das colinas da cidade, os vendedores, que se atiram literalmente às janelas dos carros para vender cajus ou as crianças, que aos domingos, mandam nas ruas da cidade e as fecham para jogar futebol.
A Cotton Tree (árvore do algodão), posicionada estrategicamente no centro da cidade, já cá estava na década de 90 e testemunhou muitas coisas. Testemunhou por exemplo, que a religião não entrou na equação durante a guerra. “Todos acreditamos num só deus”. A Cotton Tree também testemunha os gangues que lá se passeiam e que independentemente da cor do seu lenço trocam ideias e os seus cigarros de haxixe. É por lá que passa quase diariamente o presidente do país (homem cristão que se apoia num primeiro-ministro muçulmano).
E por falar em religião, é também ali que se cruzam centenas de frases de ordem religiosa:“God is great” (Deus é bom), “Trust in Alla” (Confia em Alla), “Be gratefull” (Sê Grato), “Gsus Loves You” (Deus ama-te) são alguns dos slogans pintados nas vans (transportes públicos) que lá passam rumo ao seu destino final. Procissões de enterros cristãos que adoptam rituais islâmicos, médicos tradicionais a declamarem textos do Al Corão e os católicos a visitarem mesquitas aos domingos, deixam de ser pecados originais e passam repetidamente pela Cotton Tree (árvore de algodão).
Parece que deste lado do mundo a religião é mesmo um ponto de união, quase como se aqui se concretizasse a sua origem do latim “Religar”. A cidade tem mais de 1 milhão de habitantes e seria pouco criativo todos terem as mesmas crenças. Se assim fosse não haveriam artistas, cientistas, mágicos ou até filósofos.
Nos dias que correm, é comum ver religiões a tornarem-se em instituições de opressão, desunião e extremismo (como testemunhamos o terrorismo ou a simples culpa cristã). Talvez seja isto que leva a maioria das pessoas a distanciarem-se da sua espiritualidade. Mas qual será o impacto disto nas futuras gerações?
Se antigamente falar de religião no contexto da saúde mental era considerado “de doidos”, hoje já há quem defenda que a espiritualidade é um excelente antidepressivo, tal como dormir. E foi por isto que decidi investigar a importância desta dimensão no desenvolvimento emocional dos mais pequenos e a incluí nas entrevistas que faço por aí.
“Deus come muitos hambúrgueres e tem caracóis. Nunca falei com ele.” Respondeu-me o Vicente de 7 anos, em Lisboa. O João, de 5 anos, desabafou que já tinha falado com ele, mas não podia dizer a ninguém, porque a mãe não acredita. “Sim, Deus já me respondeu. Ele responde sempre que os pedidos são muito bons”, disseram tanto a Carminho, lisboeta de 4 anos, como a Alexia, em Freetown, de 8 anos. “Ele manda-nos para o mundo, para vivermos muito e depois, quando estamos cansados, ele leva-nos para o céu outra vez” disse-me a Mimi, de apenas 4 anos em Freetown. Mas foi o John (disse que o podia tratar assim) de apenas 6 anos, filho dos gangsters de Frewtown, nascido e crescido na rua, que mais me emocionou com a sua resposta: “Nós vimos ao mundo para sofrer. Se ele gostar de nós, leva-nos…”
Quando falamos destes temas, parece que nem sempre nos lembramos do óbvio: Distinguir religião de espiritualidade. A espiritualidade envolve a crença numa força maior (normalmente chamada de Deus) que controla o Universo e o une às pessoas definindo o seu destino, e por isto dando-lhe um sentido de propósito e de conexão com o todo. A religião é a operacionalização da espiritualidade, composta por estas crenças, mais rituais e muitos mitos.
Os estudos indicam que ter espiritualidade previne em 80% a instalação de depressões ou mal estar psicológico. As crianças, futuros adultos, com uma espiritualidade desenvolvida, para além de um sentido de propósito mais apurado, têm um sentido de pertença e esperança mais fortes, tal como menor angustia em termos existenciais: “eu pertenço ao mundo, que pertence a um universo e portanto há coisas que estão fora do meu controlo”.
Não sou da opinião de que todos tenhamos que optar por uma religião, defendo sim, que é fundamental os adultos introduzirem a reflexão sobre a espiritualidade no dia a dia das crianças.
Temas como a existência, a vida depois da morte, a razão e mistérios da vida, são questões que fazem parte da nossa existência e para além de surgirem quando ainda crianças, muitas vezes trazem angústia. É fundamental que estes temas deixem de ser tabus. Que se crie um espaço para a criança pensar sobre questões existênciais sem que isso seja fonte de desconforto e encontre as suas prórias respostas, praticando semanalmente a generosidade, o amor, a tolerância, o respeito ou a esperança como sendo a sua religião.
Quem sabe em alguns anos, consigamos seguir os passos dos americanos e criar os “Cafés da Morte” – grupos que se juntam para falar da morte.
Ora, aqui ficam algumas dicas de como pode estimular a espiritualidade lá por casa:
1. Admitir que não sabe tudo: As crianças sentem quando não estamos certos ou estamos a mentir e isso traz-lhes confusão. É sempre mais seguro admitir que não sabe, que não tem a certeza quando se tratam de temas relacionados com a existência, com o sentido da vida ou da morte. Um exemplo comum é quando morre alguém na família e a criança pergunta o que acontece depois, uma resposta possível é: “Não tenho a certeza, a vida está cheia de mistérios. Umas pessoas acreditam em X – explicar uma teoria – e outras em Y – explicar outra teoria – e tu? o que achas que acontece?” Com esta abordagem, dá informação à criança e espaço para que aprenda a criar suas teorias sobre o tema.
2. Introduzir rituais que promovam a gratidão e reflexão, que celebrem momentos celebráveis, que marquem momentos importantes: Não posso deixar de partilhar o que descobri em casa da Maria e Kiko (um jovem casal Português). Antes de dormir os miúdos sentam-se em círculo e agradecem o que de melhor se passou com eles naquele dia, definem a intenção para o dia seguinte. A mais nova, de apenas 3 anos, é uma gulosa, e costuma agradecer o “melhor jantar do mundo”. Já o mais velho, agradece sempre “coisas que gostou que tivessem acontecido durante o dia”.
3. Criar um conjunto de valores familiares: Mesmo com 4 anos as crianças entendem valores como “Cá em casa acreditamos em generosidade”, “Cá em casa somos honestos”, “Cá em casa ajudamos quem mais precisa de ajuda” ou “cá em casa tratamos os outros, como gostaríamos de que nos tratassem”. Este tipo de valores leva a criança a praticar a sua formação de carácter e a sentir que pertence a um grupo.
4. Criar um momento de “Pausa” na semana: Pode começar por explicar que uma das coisas que a religião trouxe de positivo aos longos dos séculos, foi o facto de se tirar um momento para se pensar em questões divinas, existênciais e em nós. Pode fazer como a Inês e João, um casal Português que tem o dia sem electrónica, onde tudo o que seja eléctrico é tirado das fichas e dá lugar a jogos em família, jantares a luz das velas ou ir dormir mais cedo. Praticar Yoga ou mindfulness em família é outra das opções.
Boas práticas esprituais e até á próxima crónica, esta já será escrita do Japão.