
Para quem nos segue desde o principio, sabe o martírio que passamos para desalfandegar a Isuzu, do porto marítimo de Douala, Camarões. Para quem leu a última crónica, sabe que no Gabão tivemos que fazer um desvio de mais de 800 quilómetros para fugir ao terror do Pastor Ntumi. Um religioso que lidera um grupo armado de guerrilha.
No final da última crónica, tínhamos chegado ao hotel por volta da meia-noite completamente ensopados. François, um dos togoleses e excelente pessoa, depois de tudo o que passamos ainda teve disponibilidade para nos levar ao hotel Tchenga, em Lastville. Os outros dois togoleses também nos acompanharam sempre bem-dispostos: o irmão do François, gaguejava e, ainda por cima, falava num francês-crioulo impercetível, vestia calções pretos e uma camisola do Barcelona. O outro, que não tinha braço, andava descalço porque tinha perdido as alpercatas na lama, passou a noite a dizer: “Isuzu tem força, Toyota tem força, Mitsubishi não tem força”.
No dia seguinte, sob a chuva mais intensa e grossa que já vi na minha vida, reservamos a manhã para tratar das mazelas. Os mais de 500 quilómetros de pista tinham feito mossa: perdemos as duas matriculas (recuperamos uma da lama), o para-choques traseiro ficou danificado e ainda fizemos um “tattoo” na porta do lado direito ao passar, no escuro como breu, entre um camião “plantado” na lama e uma árvore. Além disso a Isuzu merecia um bom banho.
Em África, a maioria das capitais dão uma má imagem do país real. É o caso do Congo (Brazzaville). A nossa relação com as grandes cidades africanas não é pacifica e Brazzaville não é exceção. A mítica passagem do Congo, o rio com mais caudal de África que divide as fronteiras dos dois Congos, cria sempre grandes expectativas, até com uma dose “de cavalo” de romantismo. Basta ler as aventuras dos muitos Overland que por aqui já passaram.
Ainda não há muito tempo, a passagem dos veículos era feita num ferry do Estado da Republica do Congo (Brazzaville). Agora, é feito por batelões de empresas privadas e aqui começou mais um berbicacho para “Rituais de Passagem”, a maior aventura Overland da comemoração do 100º Aniversário da Isuzu.
Desde negociar o transporte da Isuzu (mais de 1000 dólares) passando pela repugnante e corrupta atuação das autoridades de ambas as margens, até à saída da Isuzu do porto marítimo de Kinshasa, foi todo um processo obscuro orquestrado por um bando de oportunistas fardados e de crápulas associados, ratazanas do esgoto, que nos trouxe rapidamente à memória o que tínhamos passado em Douala, embora numa versão mais curta. Desta vez, numa travessia de 30 minutos, foram precisos quatro dias e mais não sei quantas carimbadelas e outras tantas “motivações” para que os portões da Alfandega se abrissem.
De Kinshasa até à fronteira do Luvo distam cerca de 200 quilómetros. Quando “desalfandegamos” a Isuzu, ao fim da tarde, a nossa ideia foi partir imediatamente para a fronteira do Luvo, entre o Congo e Angola. As “ratazanas de esgotos” que proliferam pelo porto marítimo de Kinshasa aconselharam-nos a não fazer a viagem sozinhos “porque à noite é muito perigoso”. Alguns pediram 500 dólares pela escolta e proteção. De facto, Kinshasa perdeu todo o encanto de outros tempos. É uma cidade feia, suja e insegura. Parece que todos têm licença para matar.
Inserimos as coordenadas da fronteira no GPS, ignoramos a “faladura” das ratazanas e fizemo-nos à vida. Ao mesmo tempo, levantava-se um temporal e minutos depois começou a chover copiosamente. Parece que jogou a nosso favor. Fizemos toda a viagem sem problemas e nem sequer paramos a um único controlo de policia.
Quando chegamos à fronteira do Luvo, já noite cerrada, o espetáculo era no mínimo degradante. Centenas de pessoas amontadas em cima da lama e do lixo na esperança de vender qualquer coisa, para sobreviver. A fronteira já tinha fechado.
Dirigimo-nos a um barraco cheio de policias e perguntamos se podíamos passar a noite, perto deles. Primeiro, disseram que sim, depois um agente identificou-nos e pediu para o seguirmos. Chovia cada vez mais. Ouvia-se música, aos altos berros, de aparelhagens fanhosas, o cheiro gordurento empestava as imediações e grupos de jovens passavam por nós dirigindo-nos palavras em crioulo seguido de gargalhadas.
O agente abriu um portão e mandou-nos entrar. “Aqui ficam seguros e ninguém se mete convosco”. Estávamos no quintal da casa do Chefe dos Serviços de Imigração, que veio ter connosco e, amavelmente, convidou-nos para dormir em sua casa. Declinamos o convite ao qual ele replicou: “mas se precisarem de ir à casa de banho é só bater à porta. Não é uma casa de banho europeia, mas está limpa”.
No dia seguinte, colocou um oficial à nossa disposição para nos ajudar a cumprir todas as formalidades e desenvencilhar airosamente daquela fronteira caótica.
Quando chegamos à fronteira de Angola e ouvimos o primeiro bom dia da boca do militar de serviço, sai do carro, dei-lhe um abraço ao mesmo tempo que lhe dizia: “ nem calcula como é bom ouvir falar português”.