Tenho para mim – o que é dizer pouco- que Ruben A é um dos mais injustiçados escritores portugueses. Talvez porque se tenha dedicado mais a desenhar contos e a pintar memórias do que a desfiar romances. Talvez porque fosse rapaz de boas famílias num mundo cultural ainda hoje construído de preconceitos e de estigmas sociais pintados in sotto dissu. Adiante. Dele gosto de quase tudo e admiro, com um pasmo que é só meu, mesmo aquilo que não gosto tanto. Mas de entre tudo o que gosto, e por razões que hão de dar um romance, gosto com um gosto muito especial, ali escondido a “Páginas II”, do seu Rapaz de Veludo. Que aliás se fez meu. Mas isso são contas de outro rosário.
Não vos estragarei o prazer de o encontrar, na biblioteca de um editor que já não há, sôfrego como só ele, a dar à costa em Afife. Dele só vos direi que contou ao Ruben, e através dele o Ruben me contou a mim, o que é isso de ser afogado. “A única diferença está no simples facto de caminharem sempre horizontais. Nunca se levantam andam sempre paralelos ao fundo.” De resto tudo é paz e a “calma marinha do seu silêncio”. Ou quase. Porque, tal como acontece ao próprio Rapaz, os afogados que são seus amigos, as crianças dos “gritos pequenos”, padecem de um mal que é só deles. Um mal de quem é morto e lançado ao mar. Ou morto porque é lançado ao mar. Um mal que é uma sede dos diabos. Uma falta eterna de água doce. Uma angústia extrema, oceânicamente imensa, como a da rapariga linda que veio, horizontal, perguntar-lhe, julgo que nos confins do mar dos Sargaços, se trazia consigo uma garrafa de água do Luso.
É nestes mortos horizontais, despenteados de vida, sôfregos de água doce, paralelos ao fundo, angustiados até à maior profundeza das suas almas, é nestes mortos horizontais que penso quando penso no cemitério marinho de que se faz o mediterrâneo de Lampedusa. Penso neles, na desesperada pulsão de vida que haveria de conduzi-los à morte, na estrada que vai da pardacenta Eritreia, da violenta Síria, da falhada Somália até ao cemitério azul para onde se lançam na esperança mais desesperançada que me foi dada a conhecer. Penso neles, na sua vida, tão frágil de amanhãs, que se faz suicida. E penso na minha Europa. Penso nesse magnífico projecto de paz que há muito vem perdendo o Norte. Penso na Europa que era das luzes, que sonhou (ingenuamente) ser da igualdade e ser da fraternidade, que foi mesmo dos libertadores liberalismos, das sociais democracias e das teias protectoras por baixo de quem ninguém, em dia nenhum, jamais cairia. Penso nessa Europa que era, e nesta que é, em acelerada decadência, condomínio fechado perdido numa cidade imensa que é um mundo tornado subúrbio. Penso nesse continente que é o meu, que é ímpar em termos civilizacionais e que se lançou à deriva numa louca deriva. Penso nessa jangada de pedra que por dentro se rasga de norte a sul, e que, vista ainda mais de sul, cada vez mais parece uma fortaleza trancada, agarrada a um tempo que já não é
Penso em tudo isto e, repito, não vejo solução óbvia. A não ser, precisamente a mais óbvia de todas. A de aceitar que o vento não se pára com as mãos, que Mundo sempre se fez e sempre se fará de migrações, que até a Europa sempre encontrou refúgios para onde migrar nos momentos mais negros da sua história.
Talvez a única saída seja mesmo essa. A de tomarmos lucidamente em mãos a reconstrução de uma Europa que, para ser verdadeiramente Europeia, não se fará exclusiva nem maioritariamente de Europeus.
Mas, isto dito, não se ponham já a salivar ao som dos multiculturalismos assépticos. Haverá, concedo sem quaisquer problemas ou reservas, uma Europa sem europeus. Mas a Europa sem herança e sem matriz cultural Europeia ?(a tal da constituição que não foi) não será nem verdadeiramente europeia, nem tão pouco o porto de abrigo com que sonharam, em vão, os afogados horizontais de Lampedusa.